sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Contos de Lovecraft: A coisa na soleira da porta (1º Parte)

I

É verdade que disparei seis balas na cabeça de meu melhor amigo e, ainda assim, espero mostrar, com esse depoimento, que não sou o seu assassino. No começo serei chamado de louco – mais louco do que o homem que alvejei em sua cela no Sanatório de Arkham. Mais tarde, alguns de meus leitores vão pesar cada afirmação, relaciona-la com os fatos conhecidos e vão perguntar-se como eu poderia ter pensado diferente depois de encarar a evidencia daquele horror - daquela coisa na soleira da porta.

Até enfim eu também não via nada além de loucura nas histórias fantásticas de que tinha tomado parte. Mesmo agora me pergunto se estava enganado – ou se não estou mesmo louco, afinal não sei – mas outras pessoas tem coisas estanhas a dizer sobre Edward e Asenath Derby e nem mesmo a estúpida polícia sabe mais o que fazer pala explicar aquela última e terrível visita. Os policiais tentaram montar uma frágil teoria envolvendo um aviso ou uma brincadeira de mau gosto por criados demitidos, embora saibam, no íntimo, que a verdade é infinitamente mais terrível e inacreditável. Eu digo, pois, que não assassinei Edward Derby, antes o vinguei, e assim expurguei da Terra um horror cuja consciência poderia ter espalhado terrores inauditos sobre toda a humanidade.

Existem zonas negras de sombra próximas de nossos caminhos cotidianos e, de vez em quando, algum espírito maligno abre uma passagem entre eles. Quando isso acontece, a pessoa informada deve agir sem pesar os conseqüências.

Conheci Edward Pickman Derby durante toda sua vida. Oito anos mais novo do que eu, era tão precoce que nós tínhamos muito em comum desde quando ele tinha oito, e eu dezesseis. Foi a criança erudita mais extraordinária que já conheci, e aos sete anos escrevia versos de um feitio soturno, fantástico, quase mórbido, que provocavam a admiração dos preceptores que o cercavam. Talvez a sua educação particular e seu isolamento cercado de mimos tivessem algo a ver com o seu florescimento prematuro. Filho único, ele tinha uma saúde precária que enchia de sobressaltos seus pais extremados e os levava a conservá-lo firmemente preso ao seu lado. Ele não tinha permissão de sair sem a enfermeira, e raramente tinha a oportunidade de brincar à vontade com outras crianças.

Tudo isso com certeza contribuiu para uma vida interior singular e secreta no menino que encontrava na imaginação sua principal via de acesso à liberdade. De qualquer forma, sua erudição juvenil era prodigiosa e excêntrica, e sua escrita fluente me cativou a despeito de eu ser mais velho. Naquela época, eu tinha veleidades artísticas de uma propensão um tanto grotesca, e descobri naquele garoto mais novo uma alma gêmea. O que havia por trás de nosso amor comum pelas sombras e maravilhas era, sem dúvida, a ancestral, decrépita e sutilmente temível cidade onde morávamos – a legendária e enfeitiçada Arkham, com sua procissão de telhados abaulados de duas águas e balaustradas georgeanas caindo aos pedaços, assuntando os séculos, tendo ao lado os murmúrios soturnos do Miskatonic. Com o passar do tempo, encaminhei-me para a arquitetura e desisti de ilustrar um livro de poemas satânicos de Edward, mas nossa
camaradagem não diminuiu. O gênio excêntrico do jovem Derby desenvolveu-se de maneira notável e aos dezoito anos ele causou uma verdadeira sensação quando sua coletânea de poemas satânicos foi editada sob o titulo Azatoth e Outros Horrores. Ele foi um correspondente intimo do conhecido poeta baudelairiano Justin Oeoffru e autor de O Livro do Monoiro, que morreu aos gritos num asilo, depois de visitar a sinistra n’aí Hungna.

Em matéria de autoconfiança e assuntos práticos, porém, Derby era muito retardado em virtude da existência mimada. Sua saúde havia melhorado, mas seus hábitos de dependência infantil haviam sido reforçados pelos pais extremosos. Assim, ele nunca viajava sozinho, não tomava decisões independentes, nem assumia responsabilidades. Logo se via que ele não disputaria em condições de igualdade nas arenas comercial e profissional, mas a fortuna da família era tal que isso não representava nenhuma tragédia. Chegando à idade adulta, conservou um enganoso aspecto de infantilidade. Louro, de olhos azuis, tinha a aparência fresca de uma criança, e só com muito esforço se podiam notar suas tentativas de cultivar um bigode. Sua voz era suave e graciosa, e a vida mimada e sedentária deu-lhe uma rotundidade juvenil em vez da obesidade da meia idade prematura. Tinha boa estatura e seu rosto bonito faria dele um notável namorador se a timidez não o tivesse confinado à reclusão e ao gosto pelos livros.

Os pais de Derby levavam-no ao exterior todos os verões e ele não demorou para adotar os aspectos superficiais do pensamento e da expressão europeia. Seus pendores, como os de Poe, se voltaram mais e mais para o decadentismo, entusiasmando-se pouco com outras sensibilidades e aspirações artísticas. Tínhamos grandes discussões naqueles tempos. Eu cursara Harvard, estudara num escritório de arquitetura em Boston, casara me e finalmente retornara a Arkharn para exercer a profissão, instalando-me na propriedade da família da Saltionstall Súeat depois que o pai se mudou para a Flórida para cuidar da saúde. Edward costumava aparecer quase todas as noites, de modo que cheguei a considerá-lo parte da família. Ele tinha um modo característico de tocar a campainha ou soar a aldrava que ficou sendo um verdadeiro sinal em código de forma que, depois do jantar, eu sempre ficava à espera das costumeiras três batidas secas, seguidas de uma pausa e outras duas.

Eu o visitava em sua casa com menor freqüência, observando com inveja os volumes obscuros da sempre crescente biblioteca. Derby havia cursado a Universidade Miskat Arkhan, já que seus pais não permitiriam que se afastasse deles. Entrou com dezesseis e completou o curso em três anos, graduando-se em literatura inglesa e francesa, e recebendo altas notas em tudo, exceto matemática e ciências. Misturava-se muito pouco com os outros estudantes, conquanto olhasse com inveja os círculos de ‘aventureiros’ ou de ‘boêmios’, cujo linguajar superficialmente espirituoso e a pose desdenhosamente irônica ele imitava, e cuja conduta questionável gostaria de ousar adotar. O que ele fez foi tornar-se um aficionado quase fanático do conhecimento mágico secreto, pelo qual a biblioteca da Miskatonic era, e ainda é, famosa. Freqüentador perpetuo da superfície da fantasia e do bizarro, ele mergulhava fundo nas finas e enigmas reais levados por um passado fabuloso para orientação ou a perplexidade dos pósteros. Lia coisas como o pavoroso Livro de Eibon, o Unar.ssprechlichen KrsIten de von Juntz, e o proibido Necronomicon do louco árabe Abdul Alhazred, embora não contasse a seus pais que os havia lido. Edward tinha vinte anos quando nasceu meu único filho, e pareceu contente quando batizei o recém-chegado de Edword Derby Upton em sua homenagem.

Aos vinte e cinco Edward Derby era um homem de erudição prodigiosa e um poeta e fantasista bastante conhecido, embora a falta de contatos e responsabilidades tivesse arrecado seu crescimento literário tornando suas realizações desconhecidas. Talvez eu fosse seu amigo mais íntimo, considerando-o uma mina inexaurível de questões teóricas vitais, enquanto ele me consultava sobre todos os assuntos que não queria mencionar aos pais. Permaneceu solteiro – mais por timidez, inércia e excesso de proteção paternal do que por inclinação – e circulava em sociedade apenas em função das atividades mais comezinhas e rotineiras. Quando veio a guerra, a saúde e a inveterada timidez o mantiveram em casa. Eu fui servir em Plattsburg, mas não cheguei a ir para o exterior. E assim passaram-se os anos. A mãe de Edward morreu quando ele tinha trinta e quatro, e durante alguns meses ele esteve prostrado par um estranho mal psicológico. Seu pai levou-a à Europa, porém, e ele conseguiu livrar-se do problema sem seqüelas visíveis. Depois daquilo, ele
parecia sentir uma espécie de alegria grotesca como se tivesse parcialmente escapado de alguma servidão invisível. Começou a se misturar com o círculo universitário mais “avançado”, apesar de sua idade mediana, e esteve envolvido em alguns acontecimentos escabrosos – numa ocasião, pagando uma pesada chantagem (com dinheiro que lhe emprestei) para manter o pai desenformado sobre a sua participação num determinado caso. Correram rumores muito estranhos sobre o círculo radical da Miskatonic. Chegou-se a falar de magia negra e de acontecimentos absolutamente inacreditáveis.

II

Edward estava com trinta e oito anos quando conheceu Asenath Waite. Ela devia ter perto de vinte e três, na época, e estava seguindo um curso especial de metafísica medieval na Miskatonic. A filha de um amigo meu a conhecia de antes – da Escola Hail, de Kingsport – e tratara de evitá-la devido à sua estranha reputação. Era trigueira, apequenada e de muito boa aparência, exceto pelos olhos muito saltados, mas alguma coisa em sua expressão afastava as pessoas mais sensíveis.

Entretanto, era sobretudo sua origem e sua conversa que faziam as pessoas comuns a evitar. Descendia dos Waite de Innsmouth, e muitas lendas obscuras se acumularam, durante gerações, sobre a decrépita e quase deserta Innsmouth e sua gente. Correm histórias sobre pactos pavarosos por volta de 1850, e sobre um elemento estranho, “não inteiramente humano”, nas antigas famílias do arruinado porto pesqueiro – histórias que só ianques dos velhos tempos conseguem inventar e repetir com a devida “horripilência”. O caso de Asenath era agravado por ser filha de Ephraim Waite – a filha tem para com uma esposa misteriosa que só circulava velada. Ephraim morava numa mansão um tanto decadente da Washington Street, em Innsmouth, e quem viu o lugar (a gente de Arkham evita Innsmauth sempre que pode) afirma que as janelas do sótão estavam sempre fechadas com tábuas e que ruídos estranhos escapavam da interior com a chegada da noite. Sabia-se que o velho havia sida um prodigioso estudante de magia em seu tempo, e segundo uma lenda, podia provocar ou amainar tempestades na mar quando bem lhe aprouvesse. Eu o havia visto uma ou duas vezes em minha juventude, quando ele fora a Arkham consultar volumes proibidos na biblioteca da universidade, e havia detestado o rasto cruel, soturno, com sua hirsuta barba cinza escuro. Ele morreu louco – em circunstâncias muito estranhas – pouco antes de sua filha (deixada, por sua vontade, sob a tutela nominal do reitor) entrar na Escola Hali, mas ela havia sido uma discípula sua, doentiamente voraz e parecia diabólica como ele, às vezes. o amigo cuja filha freqüentara a escola com Asenatb Waite repetiu muitas coisas curiosas quando as novas sobre o relacionamento de Edward com ela começaram a se espalhar. Asenath, ao que parece, usara de uma espécie de mágica na escola, e parecia mesmo capaz de realizar alguns prodígios desconcertantes. Ela dizia ser capaz de provocar tempestades, mas seu aparente sucesso era em grande medida atribuído a um fantástico pendor para a predição. Nenhum animal a apreciava e ela podia fazer cachorros uivarem com alguns gestos da mão direita. Houve momentos em que ela exibiu traços de conhecimento e de linguagem muita estranhos – e chocantes – para uma garota, que assustava as colegas com olhares de esguelha e piscadelas incompreensíveis, parecendo extrair uma ironia obscena e prazerosa da situação. O mais extraordinário, porém, foram os casos bem atestados de sua influência sobre outras pessoas. Ela era, sem a menor dúvida, uma genuína hipnotizadora. Fixando o olhar de maneira especial numa colega, geralmente provocava nesta um sentimento inconfundível de personalidade trocada – como se ela fosse por um momento colocada no corpo da mágica, meio que podendo olhar de frente para seu corpo real, cujos olhos saltados brilhavam com uma expressão que não era sua. Asenath fazia afirmações bizarras freqüentes sobre a natureza da consciência e sua independência do corpo físico – ou, pelo menos, dos processos vitais do corpo físico. Tinha a maior raiva, porém, de não ser homem, pois achava que o cérebro masculino tinha poderes cósmicos exclusivos e de longo alcance. Se tivesse um cérebro de homem, declarava, poderia não só igualar, mas inclusive superar o pai no domínio de forças desconhecidas.

Edward conheceu Asenath numa reunião da “intelligencia”, realizada no quarto de um aluno e não conseguiu falar de mais nada quando veio ver-me no dia seguinte. Os interesses e a erudição dela eram parecidos com os seus e, além disso, ele ficou extremamente arrebatado por sua aparência. Eu nunca vira a moça, e só me recordava, muito de leve, de referências casuais, mas sabia quem ela era. Achei lamentável o arrebatamento de Derby por ela, mas não disse nada para desencorajá-lo, pois é com a oposição que a paixão mais prospera. Ele não pretendia, conforme me disse, mencioná-la a seu pai. Nas semanas subsequentes, quase tudo que ouvi do jovem Derby dizia respeito a Asenath. Outros já haviam notado a galanteria outonal de Edward, embora concordassem que ele não aparentava, nem de longe, a sua idade real, nem parecia um par inadequado para sua exótica deusa.

Estava só um pouco coisa barrigudo apesar da vida sedentária e auto indulgente, e seu rosto era completamente liso. Asenath, por sua vez, tinha pés-de-galinha prematuros causados pelo exercício de uma vontade intensa.

Por essa época, Edward trouxe a moça para me conhecer, e pude perceber na hora que o interesse que ele demonstrava não era, de maneira nenhuma, unilateral. Ela o observava o tempo todo com uma aparência quase rapace, e percebi que não havia jeito de desfazer a intimidade deles. Pouco tempo depois, recebi uma visita do velho Sr. Derby, a quem sempre dedicara admiração e respeito. Ele ouvira as histórias sobre a nova amizade de seu filho e arrancara toda a verdade “do garoto”. Edward pretendia casar-se com Asenath e até andara olhando casas nos subúrbios. Conhecedor de minha grande ascendência sobre o filho, o pai achava que eu poderia ajudar a romper o namoro imprudente, mas lamentando, expressei minhas dúvidas. Dessa vez não estava em jogo a indecisão de Edward, mas a vontade imperiosa da mulher. A eterna criança havia transferido sua dependência da imagem paterna para uma imagem nova e mais poderosa, e nada podia ser feito sobre aquilo.

O casamento foi celebrado um mês depois, por um juiz de paz, a pedido da noiva. O Sr. Derby, por recomendação minha, não se opôs, e ele, minha esposa, meu filho e eu assistimos à breve cerimônia – os demais convidados eram jovens radicais da universidade. Asenath havia comprado o velho lar dos Crowninshield, na extremidade da High Street, e eles pretendiam instalar-se ali depois de uma curta viagem a Innsmouth, de onde trariam três criados e alguns livros e objetos domésticos. Provavelmente foi menos em consideração por Edward e por seu pai, mas o desejo pessoal de ficar perto da universidade, sua biblioteca e sua multidão de “sofisticados”, que levou Asenath a se instalar em Arkham e não retomar definitivamente para sua casa. Quando Edward me visitou, depois da lua-de-mel, achei-o um pouco mudado. Asenath o fizera raspar o arremedo de bigode, mas havia algo mais. Ele parecia mais sóbrio e pensativo, havendo trocado o amuo usual de rebeldia infantil por um ar de genuína tristeza. Não saberia dizer se a mudança me agradou ou não. Com certeza ele me pareceu um adulto mais normal do que antes. Talvez o casamento fosse uma coisa boa – a mudança da dependência não poderia constituir um ponto de partida para uma verdadeira neutralização, levando enfim à uma independência responsável? Ele veio só porque Asenath estava muito ocupada.

Ela havia trazido um enorme estoque de livros e utensílios domésticos de Innsmouth (Derby estremecia ao pronunciar esse nome), e estava terminando a restauração da casa e do terreno de Crowninshield. A casa dela – naquela cidade – era um lugar muito perturbador, mas alguns objetas que continha lhe haviam ensinado coisas surpreendentes. Ele estava fazendo rápidos progressos no saber esotérico agora que tinha a orientação de Asenath. Alguns experimentos que ela propunha eram muito ousados e radicais – ele não se sentia à vontade para descrevê-los – mas tinha confiança nos poderes e nas intenções dela. Os três criados eram muita estranhos – um casal bem idoso que havia servido ao velho Ephraim e se referia às vezes a ele e à falecida mãe de Asenath de maneira misteriosa, e uma criada jovem e escura, de feições notoriamente anormais, que parecia exsudar um perpétuo cheiro de peixe.

Confira a 2º Parte

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