segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Diário de Monju Xir, foragido do Bairro dos Inferiores há dez dias.

Dedicado a Jango Heinhardt,
 guitarrista de Jazz cigano que
 inspirou a criação deste conto.

Minha tinta está se acabando. Há dois dias estou hospedado na casa de um velho xamã sem casta. Esta será a última coisa que escreverei durante muito tempo, por isso escreverei uma pequena história, em vez do costumeiro relato de viagem.
Após horas de rezas, oferendas e complexos gestuais, Vishvajra nasceu, numa noite escura de chuva torrencial, numa vila esquecida de um lugar no mundo que hoje chamamos Oriente, mas que naquela época era chamado de um nome hoje totalmente esquecido. A mãe, Pema, sob o olhar radiante do pai, olhou para o xamã que conduzia os rituais.
- Então, ó grande sábio, o que o Antigo Pai e Mãe de Tudo e Todos vos disse sobre o destino do nosso Vishvajra?
Já se acreditava em destino, e já haviam sacerdotes.
_ Sim, ó grande vidente, o mais capacitado no manejo das Forças Ocultas da Natureza, acalme o coração deste velho pai, meu filho irá trazer-me orgulho? Engrandecerá a nossa família? Honrará a nossa casta? Manter-nos-á no poder?
Já haviam ricos e nobres, e eles preocupavam-se com a manutenção do comando.
O xamã, cujo nome era Sim-há, pediu que as parteiras se retirassem. Sua expressão era densa, e a sua face era a mais justa expressão da gravidade. O sábio, após olhar consternado para os dois nobres à sua frente, executou no ar, com a mão esquerda, o “gesto menos auspicioso de todos”. Pema, que amamentava o recém-nascido, atirou-o longe, como se um demônio infante assediasse o seu seio. Não houve gritos. Apenas arquejos e choro compulsivo. A criança chorava e esperneava a um canto do quarto, sem entender o gesto da sua mãe, do canto direito da sua boquinha ainda escorria leite, e o seu pulso esquerdo estava muito inchado.
Neste vilarejo de um reino oriental, acreditava-se que, se após um xamã traçar o “Gesto Menos Auspicioso de Todos”, o recém-nascido já tiver sorvido leite da mãe, ela não pode ser afogada no Grande Rio. Isto se fazia assim entre os nobres neste tempo. Vishvajra já havia sorvido goles generosos do peito tenso de Pema. Então foi deixado no Bairro dos Inferiores, lugar em que viviam trabalhadores, pessoas que para os nobres eram propensos a todo tipo de vicissitude e desregramento moral, inclusive, e sobretudo, o que os Sábios chamavam de “Vícios Mais Terríveis”, que eram Escrever delírios, pintar delírios, musicar delírios, e escrever pensamentos. No Bairro dos Inferiores, Vishvajra foi acolhido por Skandha e Shunya, que foram seus pai e mãe.
***
Os trabalhadores do Bairro dos Inferiores realizavam suas jornadas nas moradas, ruas e oficinas dos nobres sob estrita vigilância. Assim que terminavam seus trabalhos, eram escoltados ao seu bairro. Até mesmo os escritores, pintores e pensadores do bairro trabalhavam nas ruas, casas e oficinas dos nobres, mas àqueles que se negavam a trabalhar, nenhuma hostilidade era despendida, desde que eles se comprometessem a sempre produzir os seus delírios.
Quando todos os Inferiores estão dentro dos muros do Bairro, eles levam seus corpos cansados para a Praça Central, onde sob uma árvore chamada Bo Dih, tendo uma pedra como seu assento, um bardo dedilhava canções que incendiavam o coração dos homens e mulheres que se impressionam com a sua capacidade de extrair acordes divinais do seu bandolim, mesmo sendo a mão que dedilha terrivelmente deformada.
Não só esses os comentários sobre Vishvajra, o filho de Skandha e Shunya. Pelas ruas e tavernas, à noite, pode-se escutar comentários exaltados sobre como o bardo tem unido a “arte dos que pensam”, com a “arte dos que deliram”, na sua música. É como se o fogo de sua poesia tivesse se instalado permanentemente em cada Inferior, ou como se algum fogo que já habitava ali tivesse sido reavivado.
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O Rei e a Rainha tiveram outro filho. Este lhes deu orgulho, este elevou o nome da casta e do clã, este fortaleceu a permanência da Oligarquia no poder. O Rei e a Rainha não vivem mais. O Xamã não vive mais. O novo Rei decretou que qualquer filho homem de Superiores, cujos presságios do Xamã indicarem que será inclinado a escrever delírios e pensamentos, será imediatamente morto, ainda que já tenha sorvido leite de sua mãe no momento em que o Xamã realizar o Gesto Menos Auspicioso de Todos.
Uma noite antes de anunciar o decreto, o novo Rei teve um sonho perturbador. Um sonho sobre uma pequena chama ambulante que ameaçava incendiar todo o seu reino. Antes de acordar o rei se aproximou da chama, e viu dentro dela um homem em êxtase tocando um alaúde e cantando versos que negavam a inferioridade dos Inferiores.

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