segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Contos de Lovecraft - A Tumba (2º Parte)

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(...)

Desde então passei a ir à tumba a cada noite, vendo, ouvindo e fazendo coisas que não devo jamais recordar. Meu modo de falar, sempre suscetível às influências do ambiente, foi a primeira coisa a sucumbir à mudança, e o arcaísmo de dicção que subitamente adquiri foi logo notado. Mais tarde, um atrevimento e uma audácia inesperados apareceram em meu comportamento, até que inconscientemente comecei a tomar os modos de um homem do mundo, não obstante meu passado de reclusão. Minha língua, silenciosa de costume, deslizava com a graça fácil e volúvel de um Chesterfield ou com o cinismo ateu de um Rochester. Passei a exibir uma peculiar erudição, totalmente distinta do saber fantástico e monacal sobre o qual me esfalfara em minha juventude, bem como a cobrir as guardas de meus livros com fáceis epigramas de improviso, os quais evocavam acentos de Gay, Prior e a engenhosidade vivaz dos augustanos. Certa manhã, 
durante o desjejum, cheguei à beira do desastre, ao declamar com acentos de efusão palpavelmente alcoólica de uma jovialidade setecentista, uma peça de jocosidade georgiana nunca registrada em livro, que dizia mais ou menos o seguinte:

                                        Tragam aqui, meus rapazes, seus canecos de cerveja 
E bebam ao dia de hoje, antes que já não mais seja. 
Encham seus pratos de bifes, empilhando-os em montanha, 
Pois só beber e comer é o que da vida se ganha. 
Encham suas taças, 
Pois a vida passa, 
E depois ao rei e à amada não há quem um brinde faça. 
O nariz de Anacreonte era vermelho, se diz; 
Mas o que é um nariz vermelho quando se é alegre e feliz? 
Melhor ser vermelho agora 
– Deus me castigue! – que estar 
Branco como um lírio ou morto antes de o ano acabar! 
Venha, Betty, em festa, 
Beije-me na testa; 
Filha de estalajadeiro no inferno não há como esta! 
Que o jovem Harry ainda esteja de pé nos causa surpresa, 
Logo há de perder a linha e entrar debaixo da mesa; 
Mas encham bem suas taças, passem-nas de mão em mão, 
Melhor embaixo da mesa do que debaixo do chão! 
Que reine o festim, 
Que bebam por mim: 
Sob sete palmos de terra não se ri tão bem assim! 
Que o diabo me carregue, se mal me agüento de pé 
e, com todos os demônios, se de mim ainda dou fé! 
Aqui, patrão, mande Betty chamar um carro, que eu vou 
correr para casa, enquanto minha esposa não chegou! 
Alguém me sustente, 
Antes que eu me sente: 
Que enquanto em cima da terra estou feliz e contente. 

Por essa época é que adquiri meu medo atual ao fogo e aos temporais. Indiferente até então a tais coisas, tinha por eles agora um indizível horror e me retiraria para os recantos mais profundos da casa assim que nos céus se anunciassem quaisquer sinais de eletricidade. Um de meus abrigos favoritos durante o dia era o porão arruinado da mansão que se incendiara, e na imaginação eu reconstituía a estrutura tal qual teria sido em seus primórdios. Em certa ocasião, deixei pasmado um aldeão ao conduzi-lo secretamente até um sub-porão de teto baixo, de cuja existência eu parecia saber a despeito do fato de ele ter ficado oculto e esquecido por muitas gerações.

Por fim aconteceu o que eu há muito temia. Meus pais, alarmados com a alteração de maneiras e aparência de seu único filho, começaram a exercer sobre meus movimentos uma amável espionagem, a qual ameaçava resultar em desastre. Eu nada dissera acerca de minhas visitas à tumba, tendo guardado meu propósito secreto com zelo religioso desde a infância, mas agora me via forçado a ter cautela quando penetrava os labirintos da depressão brenhosa, não fosse estar sendo seguido às ocultas. Minha chave para a cripta eu a mantinha pendurada num cordão no pescoço, como um segredo que só eu conhecia. Nunca trouxe para fora do sepulcro qualquer das coisas que encontrei por entre aquelas paredes. 

Certa manhã, quando saí da tumba úmida e prendi as correntes do portal com pouca firmeza, lobriguei numa macega próxima a face horrorizada de um bisbilhoteiro. Por certo o fim estava próximo, pois meu recanto fora descoberto e o objetivo de minhas jornadas noturnas fora revelado. O homem não me abordou, de modo que me apressei a chegar a casa, a fim de descobrir o que ele reportaria ao meu pai preocupado. Seriam minhas incursões para além da porta trancada reveladas ao mundo? Imaginem com que espanto deleitoso ouvi meu espião informar a meu pai, num cauteloso sussurro, que eu tinha passado a noite na clareira em frente à tumba, meus olhos baços de sono fixados na fenda da porta não de todo fechada! Que milagre ocorrera a ponto de iludir assim esse observador? Convenci-me de que um agente sobrenatural me protegera. Na audácia que tal circunstância, enviada do céu, me dava, passei a ir, sem nenhuma dissimulação, à cripta, na confiança de que ninguém testemunharia minha entrada. Durante uma semana provei à saciedade as alegrias daquele convívio sepulcral, o qual não descreverei, até que a coisa aconteceu e me vi arrastado para este maldito lugar de tristeza e melancolia. 

Não devia ter me aventurado a sair naquela noite, pois indícios de trovões relampejavam nas nuvens e uma fosforescência infernal subia do pântano ao fundo do vale. Também o chamado dos mortos estava diferente. Em vez da tumba na encosta, era o demônio que presidia o porão chamuscado no topo da elevação que me acenava com dedos invisíveis. Quando saí de um matagal intermediário para o plaino diante da ruína, descobri sob o luar nebuloso uma coisa pela qual sempre esperara vagamente. A mansão, destruída havia um século, mais uma vez se erguia no alto como uma visão arrebatadora, todas as janelas a brilhar com o esplendor de muitas velas. Pela longa estrada rodavam as carruagens da elite de Boston, enquanto a pé se aproximava um numeroso ajuntamento de janotas empoados, provenientes das mansões vizinhas. Misturei-me a essa multidão, conquanto estivesse certo de pertencer mais ao dos anfitriões que ao dos hóspedes. Para além do saguão havia música, gargalhadas e vinho em todas as mãos. Reconheci muitas faces, e as teria reconhecido melhor ainda se as visse ressequidas ou carcomidas pela morte e pela decomposição. Em meio a essa turba selvagem e estouvada, eu era o mais selvagem e o mais debochado. Alegres blasfêmias jorravam de meus lábios, e em chocantes gracejos eu desprezava as leis de Deus ou da natureza. 

Súbito, o estrondo de um trovão, muito mais forte que a algazarra do imundo festim, rompeu o telhado e fez baixar um enorme silêncio sobre a companhia turbulenta. Línguas vermelhas de fogo e golfadas de calor ardente envolveram a casa, e os participantes, tomados pelo pavor de uma iminente calamidade que parecia transcender os limites da natureza desgovernada, fugiram aos gritos noite adentro. Somente eu permaneci, preso ao meu assento por um medo humilhante que nunca antes sentira. E então um segundo horror tomou conta de minha alma. Queimado vivo até às cinzas, meu corpo disperso aos quatro ventos, eu nunca poderia jazer no túmulo dos Hydes! Não estava meu caixão já preparado para mim? Não tinha eu o direito de descansar até a eternidade entre os descendentes de Sir Geoffrey Hyde? Ai! eu exigiria minha herança de morte, mesmo que minha alma vagasse através das eras à procura de uma nova habitação corpórea, que 
a representaria sobre aquela laje desocupada na alcova da cripta. Jervas Hyde não deveria jamais compartilhar do triste destino de Palinuro! 

Quando o fantasma da casa incendiada desapareceu, encontrei-me a gritar e a me contorcer loucamente nos braços de dois homens, um dos quais era o espião que me seguira até a tumba. A chuva caía torrencialmente, e sobre o horizonte, na direção sul, viam-se os clarões dos relâmpagos que há pouco tinham passado sobre nossas cabeças. Meu pai, a face transtornada de pesar, estava ao lado, enquanto eu ordenava aos berros que me colocassem na tumba, admoestando freqüentemente os meus capturadores para me tratarem com a máxima consideração. Um círculo escuro sobre o piso do porão arruinado sugeria uma carga violenta dos céus, e era nesse local que um grupo de aldeões curiosos estava a examinar com lanternas uma caixa pequena de fabricação antiga, que a explosão do raio trouxera à luz. 

Cessando minhas contorções fúteis e sem sentido, observei os espectadores enquanto olhavam o pequeno tesouro e obtive permissão para compartilhar de suas descobertas. A caixa, cujo fecho tinha se partido com o golpe que a desenterrara, continha alguns papéis e objetos de valor, mas eu só tinha olhos para uma coisa. Tratava-se da miniatura em porcelana de um homem jovem usando uma peruca caprichosamente encaracolada, a qual portava as iniciais “J. H.” Quanto à face, sua conformação era tal como se eu estivesse a me olhar no espelho.

No dia seguinte, trouxeram-me a este quarto que tem grades nas janelas, mas tenho sido informado sobre certas coisas por um homem velho, de mentalidade rude, por quem nutro simpatia desde a infância, o qual, tal como eu mesmo, também é amante de cemitérios. O que ousei relatar de minhas experiências na cripta trouxe-me apenas sorrisos de piedade. Meu pai, que me visita com freqüência, assevera que em tempo algum atravessei o portal lacrado pelas correntes e jura que, quando o examinou, o cadeado enferrujado tem estado como sempre esteve ao longo de cinqüenta anos. Chega mesmo a dizer que toda a comunidade sabia de minhas idas ao túmulo e que eu era muitas vezes vigiado enquanto dormia na clareira da encosta, meus olhos semicerrados fixos na fenda que conduz ao interior. Contra essas afirmações não tenho nenhuma 
prova tangível, até porque a chave para o cadeado se perdeu na luta durante aquela noite de horrores. As coisas estranhas do passado que aprendi durante aqueles encontros noturnos com os mortos ele as reputa como meros frutos de minha vida pregressa de onívora perscrutação sobre volumes antigos da biblioteca da família. Não fosse pelo meu velho serviçal Hiram, eu hoje estaria convencido de minha loucura. 

Mas Hiram, leal até o fim, conservou sua fé em mim e fez aquilo que me impele a trazer a público pelo menos uma parte de minha história. Há uma semana, ele quebrou o cadeado que prende a porta da tumba em sua posição perpetuamente semicerrada e desceu com uma lanterna até as profundezas sombrias. Sobre uma laje, numa alcova, encontrou um velho mas ainda vazio caixão cuja inscrição deslustrada contém uma simples palavra: Jervas. Nesse caixão e nessa cripta é que me prometeram que serei enterrado.

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