terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Contos de LoveCraft: A coisa na soleira do porta (2º parte)


Publicamos aqui os contos do mestre do Terror e Horror literário, H.P. Lovecraft, e iremos agora para a 2º parte de "A Coisa na Soleira da porta. Para quem ainda não conferiu, leia o início do conto no link abaixo.




2º PARTE

III

Nos dois anos seguintes, vi Derby cada vez menos. Transcorria às vezes uma quinzena sem as três-mais-duas batidas familiares na porta, e quando ele aparecia – ou quando eu o visitava, o que era cada vez mais raro – ele não parecia muito propenso a conversar sobre assuntos importantes. Mostrava-se reservado sobre aqueles estudos ocultos que costumava descrever e discutir em detalhes, e preferia não falar da esposa. Ela havia envelhecido extraordinariamente desde o casamento, chegando a parecer então – por estranho que pareça – a mais velha dos dois. Seu rosto exibia o esforço de concentração mais determinado que eu já vira, e seu aspecto geral parecia induzir uma vaga e inclassificável repulsa. Minha mulher e meu filho também o notaram e pouco a pouco fomos deixando de visitá-la – com o que, admitiu Edward numa de suas infantis faltas de tato, ela ficara muitíssimo grata. De vez em quando, os Derby partiam para viagens demoradas – declaradamente à Europa, embora Edward insinuasse, às vezes, destinos mais obscuros. Já se havia passado um ano quando as pessoas começaram a comentar a transformação de Edward Derby. Eram mexericos muito casuais, visto que a mudança era puramente psicológica, mas suscitavam questões interessantes. Ao que parecia, de vez em quando Edward era visto exibindo uma expressão e fazendo coisas de todo incompatíveis com a frouxidão usual de sua natureza. Por exemplo – embora antes não soubesse guiar, fora visto, algumas vezes, entrando ou saindo velozmente pelo acesso da velha Crowninshield com o potente Packard de Asenath, conduzindo-o como um mestre, e enfrentando engarrafamentos  de trânsito com uma habilidade e determinação alheias por completo à sua natureza habitual. Nessas ocasiões, ele parecia estar sempre terminando de chegar de viagem ou partindo para uma – que tipo de viagem, ninguém conseguia imaginar, embora quase sempre preferisse a velha estrada para Innsmouth. Curiosamente, a metamorfose não pareceu muito agradável. Diziam que ele ficava muito parecido com a esposa, ou com o próprio velho Ephraim Waite, naqueles momentos – ou talvez, aqueles momentos parecessem estranhos por serem tão raros. Às vezes, horas depois de sair daquele modo, ele voltava largado no banco traseiro do carro que era dirigido por algum motorista ou mecânico, obviamente contratado. Fora isso, o aspecto preponderante que ele apresentava nas ruas durante o declínio de seus relacionamentos sociais inclusive, posso dizer, de suas visitas a mim, era o do indeciso dos velhos tempos – a irresponsabilidade infantil ainda mais acentuada do que no passado. Enquanto o rosto de Asenath envlhecia, o de Edward – exceto naquelas ocasiões especiais - se abrandava numa espécie de imaturidade descabida, salvo quando era atravessado por rasgos da nova tristeza ou compreensão. Era, de fato, muito intrigante. Nesse ínterim, os Derby haviam praticamente se afastado do alegre circuito universitário – não por sua vontade, conforme se ouviu, mas porque alguma coisa em seus estudos correntes chocava os mais calejados dos outros decadentistas. Foi no terceiro ano do casamento que Edward começou a insinuar-me abertamente um certo medo e insatisfação. Ele deixava cair observações sabre coisas “indo longe demais” e falava muito sombrio sabre a necessidade de “preservar sua identidade”. De início ignorei essas referências,
mas com o tempo comecei a inquiri-lo discretamente, lembrando-me do que a filha de meu amigo havia dita sobre a influência hipnótica de Asenath sobre as outras garotas da escola – casos em que alunas haviam pensado estar dentro do corpo dela, olhando para si próprias à frente. Essa inquirição pareceu deixá-lo ao mesma tempo alarmado e agradecido, e certa vez ele murmurou alguma coisa sobre ter uma conversa séria comigo, mais tarde.

Por essa época, o velho Sr. Derby morreu, o que, mais tarde, me deixou muito grato. Edward ficou perturbado demais, mas de modo nenhum, perdido. Desde o casamento, ele mal via a pai, visto que Asenath concentrara em si todo o senso vital de laços familiares dele. Alguns o chamaram de insensível na perda – especialmente depois que aqueles modos lépidos e autoconfiantes no carro começaram a aumentar. Ele quis mudar-se de volta para a velha mansão dos Derby, mas Asenath insistiu em ficar na casa de Crowninshield, com que se acostumara.

Pouco tempo depois, minha esposa ouviu uma história curiosa de uma amiga – uma das poucas que não havia rompido com os Derby. Ela fora até o final da High Street visitar o casal e viu um carro sair voando pelo passeia com o rosto curiosamente confiante e quase zombeteiro de Edward ao volante. Tocando a campainha, foi informada pela repulsiva criada que Asenath também havia saido, mas pôde dar uma alhada na casa antes de se afastar. Ali, pelas janelas da biblioteca de Edward, ela vislumbrou um rosto que se afastou depressa – um rosto de uma pungência indescritível, marcado par uma expressão de dor, derrota e melancólica desesperança: Era – por incrível que pareça, tendo em vista sua vocação autoritária – o de Asenath, mas a visitante jurou que naquele instante as olhos tristes e desamparados do pobre Edward estavam olhando fixamente os dele. As visitas de Edward haviam então se tomado um pouco mais freqüentes, e suas insinuações às vezes concretas. O que ele dizia não era digno de crédito, mesmo na lendária e secular Arkham, mas ele despejava sua tétrica erudição com uma sinceridade e uma convicção que depunham contra a sua sanidade mental. Falava de assembleias medonhas em locais ermos, de minas ciclópicas no coração dos bosques do Maine, debaixo das quais vastas escadarias levavam para abismos de segredos sepulcrais, de ângulos complexos que conduziam, através de paredes invisíveis, para outras regiões do espaço e do tempo, e de hediondas trocas de personalidade que permitiam explorações em locais remotos e proibidas de outros mundos, e em diferentes contínuos espaço-tempo.

De vez em quando, ele secundava certas sugestões alucinadas, mostrando objetos que me deixavam pasmo – objetos de cores enganosas e texturas enganadoras como jamais se ouviu falar na Terra, com curvas e superfícies insanas que não serviam a nenhum propósito concebível e que não seguiam nenhuma geometria concebível. As coisas, dizia ele, vinham “de fora”, e sua esposa sabia como consegui-las. Às vezes – mas sempre em sussurros ambíguos e aterrorizados –, ele sugeria coisas sobre a velha Epbraim Waite, a quem via ocasionalmente na biblioteca da universidade, nos velhos tempos. Essas insinuações nunca eram específicas, antes parecendo girar em torno de alguma dúvida em particular terrível sobre se o velho bruxo estava mesmo morto – tanto em sentido espiritual, quanto corporal. Às vezes, Derby interrompia bruscamente suas revelações e eu ficava pensando se Asenath poderia ter adivinhado o teor de sua conversa a distância e feito ele parar através de algum tipo desconhecido de mesmerismo telepático – algum poder do tipo que ela revelava na escola. Ela decerto suspeitava que ele me fazia revelações, pois com o passar das semanas, tentou impedir suas visitas com palavras e olhares da mais inexplicável intensidade. Ele tinha dificuldade em vir me visitar, pois mesmo pretextando ir a outra parte, alguma força invisível bloqueava amiúde seus movimentos ou o fazia esquecer-se de seu destino naquele momento. Suas visitas em geral aconteciam quando Asenath estava fora – “fora, em seu próprio corpo”, como ele certa vez colocou. Ela sempre descobria depois — os criados vigiavam as idas e vindas dele — mas evidentemente não achou oportuno tomar alguma providência drástica.

IV

Derby já estava casado havia mais de três anos naquele dia de agosto em que me chegou o telegrama do Maine. Eu havia ficado dois meses sem vê-lo, mas ouvira dizer que ele tinha viajado “a negócios”. Asenath, ao que se supunha, fora com ele, embora os mexeriqueiros vigilantes declarassem que havia alguém no primeiro andar da casa, por trás das cortinas duplas das janelas.

Eles haviam espreitado as compras feitas pelos Chesuncook, que ficavam perto do mais selvagem, mais denso e menos devassado cinturão florestal do Maine, e levei um dia inteiro me sacolejando por uma paisagem fantástica e hostil para chegar de carro até lá. Encontrei Derby numa cela do asilo da cidadezinha, oscilando entre acessos de delírio e apatia. Reconheceu-me na hora e começou a despejar uma torrente de palavras confusas e sem sentido na minha direção.

“Dan – pelo amor de Deus! A cova dos shoggoths! Descendo os seis mil degraus... a abominação das abominações... eu nunca deixaria ela me levar, e então me vi lá... lá! Shub Niggurath! ... O vulto se levantou do altar, e lá estavam quinhentos uivando... A Coisa Encapuzada berrava ‘Kamog! Kamog!’ – era este o nome secreto do velho Ephr aim na reun... Eu estava lá, onde ela prometeu que não me levaria... Um minuto antes eu estava trancado na biblioteca, e então eu estava lá aonde ela tinha ido com meu corpo – no lugar da suprema blasfêmia, a cova ímpia onde começa o reino das trevas e o guardião vigia o portal... Eu vi um shoggoth... ele mudava de forma...Não posso suportar... Não vou suportar... Vou matá-la se me mandar lá de novo... Vou matar essa coisa... ela, ele, a coisa... vou matá-la! Vou matá-la com as próprias mãos!”

Foi preciso uma hora para acalmá-lo, mas ele enfim se tranqüilizou. No dia seguinte, arrumei-lhe umas roupas decentes no vilarejo e partimos juntos para Arkham. Seu ataque histérico havia passado, e ele ficou inclinado ao silêncio, embora começasse a murmurar coisas obscuras consigo mesmo quando o carro cruzou a Augusta – como se a visão de uma cidade despertasse recordações desagradáveis. Era evidente que ele não queria ir para casa, e considerando os delírios fantásticos que parecia ter sobre a esposa – delírios de certo decorrentes de alguma experiência hipnótica real a que fora submetido — achei que seria melhor que não fosse. Decidi que eu mesmo iria acomodá-lo por algum tempo, a despeito do possível desagrado de Asenath. Mais tarde eu o ajudaria a obter o divórcio, pois havia, com toda certeza, fatores mentais que tornavam aquele casamento suicida para ele.

Quando entramos em campo aberto, os murmúrios de Derby foram sumindo e ele cochilou, com a cabeça pendida, no assento ao meu lado, enquanto eu guiava. Durante nossa passagem ao entardecer por Portland, os murmúrios recomeçaram, mais distintos do que antes, e quando conseguia ouvi-los, identificava uma torrente de disparates de todo desvairados sobre Asenath. O tanto que ela atormentara os nervos de Edward estava claro, pois ele havia tecido todo um conjunto de alucinações a respeito dela. Seu estado atual, resmungava furtivamente, era apenas um de uma longa série. Ela se estava apoderando dele, e ele sabia que algum dia não o deixaria mais partir. Mesmo agora era provável que ela só o deixasse sair quando tinha necessidade, porque não podia retê-lo muito tempo de cada vez. Ela se apoderava sempre de seu corpo e ia a lugares inomináveis para ritos inomináveis, deixando-o no corpo dela, trancado no primeiro andar – mas às vezes não conseguia retê-lo, e ele se achava de repente no próprio corpo em algum lugar muito distante, pavoroso e talvez desconhecido. Às vezes ela se apoderava dele de novo, mas noutras não conseguia. Em muitas ocasiões ele era largado em algum lugar como aquele em que eu o encontrara... inúmeras vezes ele tinha de voltar para casa de distâncias tremendas, arranjando alguém para guiar o carro depois de encontrá-lo.

O pior era que ela se estava apoderando dele mais e mais tempo de cada vez. Ela queria ser um homem – ser humana por completo – e por isso se apoderava dele. Havia identificado nele uma combinação de cérebro bem constituído e vontade fraca. Algum dia ela o ocuparia de todo e desapareceria com seu corpo – desapareceria para se tornar um grande feiticeiro como seu pai e o deixaria ilhado naquela casca que nem inteiramente humana era. Sim, agora ele entendia o sangue de Innsmouth. tinha havido uma conspiração com criaturas marinhas – era horrível... E o velho Ephraim – ele havia conhecido o segredo, e quando ficou velho fez uma coisa abominável para se manter vivo.., ele pretendia viver para sempre... Asenath conseguiria – uma demonstração bem sucedida já havia ocorrido. Enquanto Derby prosseguia com suas lamúrias, observei-o atentamente comprovando a impressão de mudança que uma observação anterior me causara. O paradoxo era que ele parecia em melhor forma do que o normal – mais firme, mais maduro e sem o traço de languidez doentia causado por seus hábitos indolentes. Era como se fosse de fato ativo e vigoroso pela primeira vez em sua vida mimada, e imaginei que o poder de Asenath o devia ter empurrado para vias não habituais de ação e vivacidade. Mas naquele momento sua mente estava num estado lamentável, pois ele resmungava extravagâncias desvairadas sobre a esposa, magia negra, o velho Ephraim e uma certa revelação que até a mim convenceria. Repetia nomes que eu reconhecia por ter folheado volumes proibidos no passado, e, de vez em quando, fazia-me estremecer com uma certa linha de consistência mitológica – de coerência convincente – que percorria seus balbucios. De tempos em tempos, fazia uma pausa, como se estivesse juntando forças para alguma revelação suprema e terrível.

“Dan, Dan, não se lembra dele – o olhar feroz e a barba desgrenhada que nunca embranquecia? Ele me encarou uma vez, e eu jamais pude esquecê-lo. Agora ela me encara daquela maneira. E eu sei por quê! Ele a descobriu no Neconomicon – a fórmula. Não ouso dizer-lhe a página ainda, mas quando o fizer, você poderá ler e compreender. Aí você vai saber o que me tragou. Em frente, em frente, em frente, em frente – de corpo para corpo para corpo – ele não pretende morrer jamais. A centelha da vida – ele sabe como romper o elo.., ela pode arder por algum tempo mesmo depois que o corpo está morto. Vou dar-lhe pistas, e talvez você possa imaginar. Ouça, Dan – sabe por que minha mulher se esforça tanto com aquela estúpida escrita de trás para diante? Já viu um manuscrito do velho Ephraim? Quer saber por que eu me arrepiei quando vi umas anotações apressadas que Asenath havia feito?"

“Asenath... será que existe essa pessoa? Por que eles suspeitam que havia veneno no estômago do velho Ephraim? Por que os Gilman murmuram sobre a maneira como ele gritava – como uma criança apavorada – quando ficou louco e Asenath o trancou no quarto almofadada do sótão onde – o outro – havia estado? Seria a alma do velho Ephraim que estava trancada? Quem havia trancado quem? Por quê, durante meses, ele andara à procura de alguém com mente boa e vontade fraca? Por que ele maldizia por sua filha não ser um filho? Diga-me, Daniel Upton – que troca diabólica foi eternizada na casa de horror onde aquele monstro blasfemo tinha a filha confiável, de vontade fraca e meio humana à sua mercê? Não a terá tomada permanente – como ela fará comigo, no final? Diga-me por que essa coisa que se chama Asenath escreve de maneira diferente quando está com a guarda aberta, de forma que não se consegue diferenciar sua escrita da...”

Foi então que a coisa aconteceu. A voz de Derby progredia para um grito agudo em seu delírio, quando foi abruptamente interrompida com um dique quase mecânico. Pensei naquelas outras ocasiões em minha casa quando suas confidências haviam cessado de repente – quando eu suspeitara que alguma obscura onda telepática da força mental de Asenath estava interferindo para silenciá-lo. Esta, porém, era alguma coisa inteiramente diferente - e, senti, muitíssimo mais horrível. O rosto ao meu lado se desfigurou até ficar quase irreconhecível por um instante, enquanto um estremecimento percorreu seu corpo todo. Era como se todos os ossos, órgãos, músculos, nervos e glândulas estivessem se reacomodando numa postura, num ajuste de tensões e numa personalidade geral radicalmente diferentes.

Eu não saberia dizer, por mais que quisesse, onde residia o honor supremo, mas fui varrido por uma tal anda de enjôo e repugnância – uma sensação tão paralisante, petrificante, de absoluta estranheza e anormalidade – que minha empunhadura do volante ficou fraca e insegura. A figura ao meu lado parecia menos um amigo de toda a vida do que alguma intrusa monstruosa do espaço exterior – algum foco maldito, de todo execrável, de forças cósmicas malignas e misteriosas. Fiquei desacordado por um instante apenas, mas um instante depois meu companheiro havia empunhado a volante e me obrigara a trocar de lugar com ele. O crepúsculo havia escurecido bastante, então, e as luzes de Portland já haviam ficado muito para trás, não me permitindo discernir perfeitamente o seu rasto. O brilho de seus olhos, porém, era assombroso, e eu sabia que ele devia estar naquela estranha condição enérgica – tão distinta de seu modo de ser habitual – que tantas pessoas haviam notado.

Parecia estranho, incrível, que O lânguido Edward Derby – incapaz de se proteger e que jamais aprendera a dirigir – estivesse me dando ordens e assumindo o volante do meu próprio carro, mas foi isso mesmo o que ocorreu. Ele ficou sem falar durante algum tempo, e, em meio a meu inexplicável horror, fiquei contente que não o fizesse.

Sob as luzes de Biddeford e Saco, pude ver seus lábios bem apertados, e estremeci com o brilho de seus olhos. As pessoas estavam certas – ele se parecia terrivelmente com a esposa e com o velho Epbraim quando estava naquele estado. Não era de espantar que seus modos provocassem repulsa – havia neles alguma coisa de anormal e diabólico, e senti com maior força ainda o elemento sinistro devido aos delírios alucinados que estivera ouvindo. Com todo meu antigo conhecimento de Edward Pickman Derby, aquele homem era um estranho – um intruso vindo de alguma espécie de abismo infernal.

Ele não abriu a boca até chegarmos a um trecho escuro da estrada e quando o fez, sua voz me pareceu muito pouco familiar. Era mais profunda, mais firme e mais decidida do que as que eu já tivera a oportunidade de ouvir de sua parte, enquanto seu sotaque e sua pronúncia estavam modificados por completo – conquanto com vagas, remotas e perturbadoras lembranças de alguma coisa que não consegui situar direito. Creio que exibia um traço irônico muito profundo e genuíno no timbre – não a pseudo-ironia vistosa, viva, do calejado “sofisticado” que Derby costumava afetar, mas alguma coisa soturna, essencial, penetrante e potencialmente má. Fiquei estarrecido com aquele atitude de autocontrole seguindo tão de perto a articulação daqueles resmungos aterrorizados.

“Quero que esqueça meu acesso de agora há pouco, Upton,” ele dizia. “Você sabe como são meus nervos e imagino que possa desculpar essas coisas. Estou muitíssimo grato, é claro, por essa carona para casa.

“E também deve esquecer qualquer coisa maluca que eu possa ter dito sobre a minha mulher – e sobre coisas em geral. É isso que dá estudar demais num campo como o meu. Minha filosofia está repleta de conceitos bizarros e quando a mente fica exausta, ela cozinha toda a sorte de aplicações concretas fantasiosas. Vou tirar um descanso a partir de agora – você provavelmente não me verá por algum tempo, e não deve culpar Asenath por isso.

“Essa viagem foi um tanto esquisita, mas é tudo muito simples. Há certas relíquias indígenas nos bosques do norte – monumentos de pedra e coisas assim – de grande importância para o folclore, e Asenath e eu estamos pesquisando essas coisas. Foi uma busca trabalhosa, e parece que perdi a cabeça. Vou mandar alguém recuperar o carro quando chegar em casa. Um mês de repouso vai colocar-me em forma de novo.”

Não me lembro da minha parte na conversa, pois a estranheza desconcertante de meu companheiro de viagem enchia-me a cabeça. A cada instante, meu indefinível sentimento de horror cósmico ia aumentando, até me deixar num virtual delírio de ansiedade pelo fim da viagem. Derby não se ofereceu para me devolver o volante e me alegrou a velocidade com que passamos por Portsmouth e Newburport. No entroncamento de onde a estrada principal segue para o interior evitando Innsmouth, fiquei um pouco apreensivo que meu motorista enveredasse pela tenebrosa estrada costeira para aquele lugar maldito. Não foi o que ele fez. Acelerou para nosso destino, cruzando com rapidez por Rowley e Ipswich. Chegamos em Arkham antes da meia-noite e encontramos as luzes ainda acesas no velho solar de Cmwninshield. Derby saiu do carro com uma apressada repetição de agradecimentos, e eu fui para casa sozinho com uma estranha sensação de alívio. A viagem havia sido terrível – mais terrível ainda porque eu não sab eria dizer por qu ê – e não lamentei a previsão de Derby de uma longa ausência de minha companhia.

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