quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Só a leitura salva?


Colocando a leitura dos feeds em dia, me deparei com este post do blog da amigolina @alinevalek com um vídeo (abaixo) sobre o poder transformador da leitura, e de como as pessoas que gostam de ler deveriam incutir nos cidadãos comuns o gosto por destrinchar compridas fileiras de caracteres impressos sobre películas de celulose encadernadas em tomos de espessura variável.
Achei o vídeo simpático e esteticamente agradável, mas discordo. Tendo sido rata de biblioteca viciada em ler verbetes aleatórios da Enciclopédia Britânica na era de trevas pré-internet, eu entendo a intenção, e entendo que mais de vinte mil anos adquirindo e perpetuando conhecimento exclusivamente através da palavra escrita tenha tornado os humanos um tanto preconceituosos com as mídias novas. Mas ler não torna ninguém mais inteligente ou melhor do ponto de vista cultural que alguém que não curte leitura e prefere ver um filme.
É claro que ler desenvolve habilidades específicas — linguagem, imaginação, idioma… —, mas isso é uma particularidade da forma. Nós bem sabemos que o indivíduo que não sabe ler de verdade pode dar dores de cabeça ou no mínimo irritar, mas sua falta de habilidade em interpretar a palavra escrita diz mais sobre ele mesmo que sobre a superioridade da tal palavra escrita. Jogos, quadrinhos e filmes também têm outras particularidades específicas — linguagem, imaginação, continuidade, cultura… — que a leitura não tem. E é claro que algumas histórias funcionam melhor em uma mídia que em outra.
Vou apanhar na rua depois dessa.
Vou apanhar na rua depois dessa.


É o mesmo caso da escrita cursiva: seus defensores dizem que ela é ensinada às crianças porque desenvolve habilidades motoras específicas, mas também dá pra desenvolvê-las de outras formas, como pintura, artesanato, etc. Hoje, as escolas estão aos poucos abolindo esse tipo de escrita, o que faz amantes de tipografia e caligrafia como eu chorarem de desgosto e profetas do apocalipse rasgarem suas vestes, mas é isso que vai acontecer. Resistir é inútil, e reclamar vai apenas nos tornar iguais aos velhinhos nostálgicos que achavam que inserir fichas no telefone público era bem melhor. Um dia todo mundo vai escrever em letra bastão ou de forma e a arte caligráfica vai ser um campo com uma aplicação bem diferente. Abolir o Sütterlinschrift não levou a Alemanha às trevas.

Dei uma olhada na minha lista de livros e filmes vistos nos últimos dois anos e concluí que as histórias mais cativantes, criativas, originais e inovadoras que vi neste meio-tempo estavam nos games. Demorou cerca de quarenta anos para os games conquistarem o interesse do meio acadêmico; o cinema, enquanto técnica de registrar imagens em movimento, tem pouco mais de cem anos de existência. Perto da escrita, estão apenas na infância, mas há tanto por desenvolver! Há tanto o que fazer! Ler é basicamente sobre story telling, não sobre concatenar palavras. Livro é o meio, mas o que importa é a mensagem. Por que ler a coleção Sabrina é melhor que assistir a Maria do Bairro? Por que ler Os Três Mosqueteiros de Dumas é melhor que jogar Assassin’s Creed?

Os mais de vinte mil anos adquirindo conhecimento através do livro fazem a gente achar que ler é a única forma realmente culta e válida de se ensinar, aprender, viajar no tempo e no espaço sem sair do lugar. É compreensível, explica, mas não é o único meio de enriquecer o indivíduo. Não há nada que o “poder transformador” de um livro tenha que também não esteja presente em um bom filme, música, HQ ou game. Filmes, músicas, HQs e jogos (e o que mais surgir dessa mistureba) não podem mais ser vistos como apenas filhos bastardos da palavra escrita*.

Uma revolução vem acontecendo nos últimos duzentos anos bem diante do nosso nariz. Confundir meio e mensagem só faz a gente perder o foco dela e se ocupar com toneladas de papel velho.

*Parafraseado de Scott McCloud, em “Desvendando os Quadrinhos”.

Fonte: Meio Bit
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