Crônicas do Planeta Tunguz 1
-Katsuya, seu filho de uma cadela sifilítica!
O General Katsuya mirava o velho baixo de cabelos longos e
brancos com a flecha do arco descomunal em riste.
- Não tem mais volta, velhote. A Ilha de Ainô está toda tomada. Assim como as
demais ilhas. Todos agora devem obediência ao Imperador Kell-Drön, aquele que
veio do Teto do Universo para nos salvar da decadência moral, espiritual e
política.
-Aquele que nos entregou ao demônio Mahashuramara. Pior, os nossos bebês...
- Bebês? Aquele estrume. Sementes de uma raça fraca e deformada!
Quando terminou de pronunciar a última palavra, um raio
riscou o céu, seguido de um ribombar ensurdecedor, que teve a sua dramaticidade
aumentada com a gargalhada insana de Katsuya. Sua armadura brilhava sob a chuva
intensa, refletindo as chamas da cidade de Soga. Não parecia que aquela mesma
armadura tinha participado de um combate encarniçado contra um exército inteiro,
do qual o general saíra ileso.
- Desista, velho. A sua ordem ridícula de velhotes babões foi extinta. Nunca mais
escutaremos suas tolas ladainhas todas as manhãs. Um novo mundo está surgindo.
Nós serviremos a Kell-Drön e Mahashuramara.
- Eu jamais servirei à ilusão, Katsuya.
Katsuya gargalhou novamente entre trovões e relâmpagos.
Girou um pequeno disco no peitoral da armadura vermelho-sangue, e os chifres do
elmo aterrador começaram a emitir um brilho esverdeado, para logo em seguida
emitirem raios que partiam de uma ponta para a outra. Os raios continuavam ao
longo do elmo, espalhando-se pela máscara demoníaca de Katsuya, e dotando seus
olhos de uma luminescência esverdeada.
-Então, velho gagá. Irá dançar conforme a música, ou vai querer se juntar aos
seus irmãozinhos no inferno?
O velho Daruma não respondia mais. Apenas olhava fixamente
para o seu antigo pupilo, ao qual criara com a um filho, desde que os seus pais
morreram numa terrível cheia do rio Te. Katsuya começou a murmurar algo muito
rapidamente, e a ponta da flecha começou a emitir um brilho fosco, que ia se
tornando cada vez mais forte.
-Então é isso. Prefere morrer heroicamente. É mesmo a sua cara. Era isso que
você queria que eu me tornasse? Um verme tíbio, um anêmico, um fraco? Graças às
minhas traições eu estou vivo e forte, e essa é a lei da natureza. Nada se
conquista com honestidade e respeito. Bendito seja o dia em que eu reneguei os
preceitos da Ordem Anagami. Bendito o dia em que quebrei o meu colar de pedras
Ji e as deixei afundarem no rio Te. O mesmo rio que matou os meus pais. O rio
que eu sequei. Bendito o dia em que o grande Mahashuramara visitou-me pela
primeira vez em sonho, e deu-me a sagrada missão de libertar o Templo Rashomon
da sua ordem de anêmicos. Bendito o dia em que deixei de ser um Chakra da
Anagami, para ser um Klih Phot da Ordem Tendai. Agora a minha conversão se
completará, velho idiota, e eu serei o senhor da ilha de Ainô.
Um raio espesso e cintilante partiu do arco a toda
velocidade. Era a própria flecha envolta em luz verde. Katsuya sentiu uma
vertigem gelar-lhe a espinha, afinal, estava assassinando o seu tutor. Fechou
os olhos, e quando os abriu, a vertigem transformou-se em raiva, depois medo,
medo de ser punido pela sua falha. O velho continuava ali, de pé, e a flecha
jazia no chão atrás dele, já sem o brilho de antes. Katsuya partiu de imediato
em direção ao velho, e tentou agarrá-lo, mas sem sucesso. Sua mão vigorosa
varou o corpo do velho de um lado a outro. Era um holofant.
-Então é verdade. Os mestres Anagami estavam conseguindo decifrar os pergaminhos
dos antigos. Porque nunca o revelaram? Velhotes desgraçados, que sejam comidos
por demônios famintos pela eternidade! Os Antigos voavam, os Antigos caminhavam
sobre veículos que se moviam sem o auxílio de animais. Os antigos se
comunicavam à distância. Os antigos faziam muito mais do que soltar raiozinhos.
Os antigos produziam os lendários holofants, fantasmas artificiais que falavam
e interagiam como seres verdadeiros. Porque renegara a Anagami? Agora estava
tudo perdido. Toda a chance de conhecer os segredos dos Antigos. Quem sabe até
a chance de trazer seus pais de volta...
Um relâmpago. A imensa sombra de um homem se estendia ao
lado da sombra do próprio Katsuya, cujas lágrimas se misturavam à chuva.
- Ora, ora. Vejam só. Basta uns dias longe da minha presença e você já está
chorando feito uma mocinha. Quanto tempo será preciso para extirpar da sua alma
essa mania de fraqueza que esses velhos gagás lhe introduziram, Katsuya?!
Kell-Drön estava atrás dele. Com sua armadura branquíssima,
de braços cruzados. Katsuya tremeu dos pés à cabeça.
-Imperador. Perdoe-me. Apenas lamento não ter tido a chance de utilizar o
conhecimento dos Antigos em prol da Era dos Fortes.
-Ora. À merda com os Antigos. São eles os culpados pela fraqueza dos povos das
quatro ilhas. São eles os culpados pela pasmaceira que imperava nessas terras.
Eles e suas ideias de auto-determinação dos povos. Eles e a maldita União das
Tribos Auto-Determinadas. Eles e o Mercado Aberto. Eles e a sua fraqueza!
Bendito o dia em que o Te transbordou, a terra tremeu, e o fogo do Mueru
desceu, destruindo os seus brinquedinhos idiotas, e a sua fonte principal de
energia. Sim, bendito o dia em que a Pedra Ki foi silenciada.
Ao ouvir o Imperador falar com tanto prazer e arrebatamento
da terrível Década em Que a Natureza Enfureceu-se, Katsuya sentiu uma pontada
no peito. Seu mestre percebeu, e gargalhou.
- Vejo em você um forte, Katsuya, mas me incomoda que em você também haja muito
do verme. Mas isso se arranjará quando visitarmos a Tumba de Norbukan, na Floresta
Amarela.
-Ardo de ansiedade enquanto aguardo esse momento, Senhor.
O gigante branco avançou em direção a seu pupilo, passando
por este, indo parar atrás de uma pequena moita, onde após uma breve busca, que
fez alguns ratinhos silvestres debandarem guinchando, finalmente encontrou um
objeto cilíndrico, que foi prontamente esmigalhado sob a pressão descomunal de
seu punho, o que fez com que o holofant se desvanecesse no ar.
-Um holofant sem rastro luminoso. Brinquedinho idiota. Katsuya, você sabia que esses
idiotas não produziam armas de destruição em massa? Tudo que esses vermes
possuíam era uma espadinha brilhante. Coisa que eu daria para o meu filho
brincar. Se eu tivesse um. Mas eu não tenho tempo para ter filhos, muito menos
para brincar com crianças. A minha vida é erigir a Era dos Fortes, e agora que
a União das Tribos está esmagada, só nos resta conferir de perto o trabalho
daqueles jovens escolhidos por Mahashuramara para libertar o Rashomon das
mãozinhas afeminadas da Anagami e seus Bosatsus idiotas. Você já viu a cara
desses deusezinhos que os velhotes adoravam?
- Eles não os adoravam, meu Sen...
- Cale a boca! Eu sei muito bem o que os Anagami e seus Chakras faziam com os
Bosatsus. Eu sei, Katsuya, EU sei, ao contrário de você, que não passa de uma
criança que deu uma espiadinha na fechadura. Vamos para a porcaria do vilarejo
de Kwan Tô, ver o que está acontecendo. Caso aqueles camponeses não dêem conta
do serviço, eu mesmo o farei com prazer. Tenho contas a acertar com aqueles
espíritos débeis que habitam o Rashomon.
Dito isto. Mestre e discípulo partiram em direção ao
vilarejo. Katsuya pegou a sua flecha do chão, e guardou-a num alforje nas
costas. As chamas ainda ardiam, e vigas ígneas ainda despencavam do alto de
esqueletos de casas, templos e mercados, quando os dois gigantes atravessaram o
que antes era a rua principal de uma das cidades mais alegres e aprazíveis da
Ilha de Ainô. Algumas vigas atingiam em cheio os homens, que continuavam a sua
marcha intrépida, inalterável, deixando para trás as vigas espatifadas. Suas
armaduras e corpos permaneciam incólumes, como fortalezas vivas. Vivas e
inexoráveis.
Algumas notas: como vocês puderam ver, nos meus contos não costumo dar descrições detalhadas de mundos, instrumentos, povos, etc. Tais elementos são apenas sugeridos, provocando assim a imaginação criativa do próprio leitor. Ah, e leiam Lovecraft!
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