sábado, 31 de março de 2012

A importância dos mitos e a criação dos nossos mundos

A questão do mito é usada inúmeras vezes na criação de nossos mundos fantásticos RPGisticos. Sejam aqueles criados pela cultura humana e relidos em mesas de jogo, sejam aqueles criados no próprio cenário, certamente derivados de outras criações de nossa realidade. Entender o conceito de mito é interessante para melhor trabalharmos em criações de cenários que possuam tais elementos, como desenvolver a origem de um panteão, a visão da sociedade sobre os mesmos, as lendas que envolvem as entidades sobrenaturais e os poderes fantásticos. Assim como nossos ancestrais o fizeram, podemos também criar mitos para explicar o que se passa em nossos mundos de jogo.

Para destacar a importância da discussão iniciada, exponho estes dois parágrafos do texto abaixo:

"(...)
É na tradição, nas antigas narrativas, nesses arquivos universais chamados erroneamente de lendas, é nos velhos contos que o homem poderá encontrar a sua verdadeira identidade mágica. Para isso, deverá sair de sua cristalização intelectual e ultrapassar a concepção de símbolo que, embora energético, não deixa de ser bastante abstrato."
(...)
Toda e qualquer sociedade, carece de mitos, pois eles encarnam suas qualidades e atributos, além de servirem de referencial à própria sociedade que os criou. De certa maneira, são elementos de ligação entre o homem e esta sociedade."

Segue abaixo o texto na íntegra, bom texto para reflexões sobre o tema...

MITOS E LENDAS, SONHOS DA CULTURA

"O mito é a janela que se abre para todos os ventos e todas as interpretações".

Desde que o homem começou a dar os primeiros passos sobre a terra, o acompanhou mais de uma interrogação e, a medida que foi evoluindo e fazendo-se mais humano, ditas interrogações cresceram em quantidade e profundidade.

Todas as grandes preocupações do homem, figuram nas mitologias, onde a princípio, investigava sua própria origem e do mundo em que habitava. Os primeiros mitos, portanto, tiveram como origem a necessidade de explicar alguns fenômenos da natureza, como o trovão, a lua, a forma das árvores e as características dos animais. Posteriormente, se construiu mitos que tratavam de explicar e penetrar pelas janelas secretas da condição humana e das instituições que se desenvolveram a partir da interação grupal.

Quando o homem via qualidades e características humanas como pertencentes a objetos ou coisas inanimadas, essas qualidades e características não eram tão somente idéias arbitrárias, mas reflexos das suas qualidades inconscientes. Quando encarava fenômenos naturais ingenuamente, personificando-os, como nos mitos e lendas, estava interpretando a natureza de acordo com sua própria natureza. Seu inconsciente era projetado no mundo exterior. Nos mitos folclóricos semi-esquecidos dos povos antigos encontramos relíquias de suas maneiras de pensar primitivas, que não estão extintas e, que reaparecem hoje, no inconsciente, na forma de sonhos e fantasias.

"Com efeito, a mitologia arcaica, integra a sociedade humana e o homem ao mundo. Ela estabelece correspondências analógicas entre o universo ecossistêmico e o universo antropológico, o qual, desta forma, se fragmenta, se completa e aparece como um microcosmo" (E. Morin). Sobre essas correspondências, a contribuição de Carl Jung é de fundamental importância, pois estabeleceu surpreendentes relações entre a esfera individual e cultural, através de sua teoria dos arquétipos, sintetizando com a brilhante metáfora: "os mitos são sonhos da cultura".

Arquétipo, do grego "arkhétypos", significa modelo primitivo, idéias inatas. Foi empregado este termo, significando o inconsciente coletivo por Yung. No mito este conteúdo refere-se à um tempo passado, remoto.

Os arquétipos estão presentes nas lendas, nos mitos e nas maneiras de ser predominantes de uma cultura. São as estruturas fundamentais do nosso psiquismo e seu conhecimento e compreensão nos permite tornarmos mais conscientes tanto das nossas fraquezas quanto fortalezas.

Para Carl Jung, o mito é a concretização do inconsciente coletivo, ou seja, um elo que une o consciente e o inconsciente coletivo. Compreende-se como inconsciente coletivo a memória das vivências de gerações que nos antecederam. O inconsciente coletivo seria a identidade da humanidade, independente de época ou tempo que tenha vivido.

Segundo Mario Mercier:

"É na tradição, nas antigas narrativas, nesses arquivos universais chamados erroneamente de lendas, é nos velhos contos que o homem poderá encontrar a sua verdadeira identidade mágica. Para isso, deverá sair de sua cristalização intelectual e ultrapassar a concepção de símbolo que, embora energético, não deixa de ser bastante abstrato."

Devemos ter em conta, que em todo o grupo humano existem mitos, criações humanas coletivas, que funcionam como um motor de recriação de um tempo passado e primordial, onde os atos humanos adquirem um significado distinto para cada feito original da espécie humana. Os mitos então, representam os processos inconscientes de tribos e raças inteiras. Foram adaptados às necessidades comuns de incontáveis gerações por um processo de convencionalização, através do qual os elementos pessoais foram eliminados. O fato de que mitos equivalentes sejam similares até em detalhes em culturas de povos bastante separados, indica que representavam temas psicológicos gerais que são verdadeiros para a humanidade como um todo. Segundo Jung, "em cada indivíduo existem imagens primordiais herdadas na estrutura do cérebro". Esta alegação explica o fenômeno do porque certas lendas e mitos aparecerem repetidas por toda a terra.

Toda e qualquer sociedade, carece de mitos, pois eles encarnam suas qualidades e atributos, além de servirem de referencial à própria sociedade que os criou. De certa maneira, são elementos de ligação entre o homem e esta sociedade.

A função social do mito está delineada em "Myto y Sociedade": "cada sociedade segundo seu modo de ser, concebe de maneira peculiar sua unidade e ao expressá-la toma consciência de sua existência. Nenhum rei, nenhuma bandeira, nenhuma outra coisa pode ser a encarnação de um grupo como é o mito".

OUTROS CONCEITOS DE MITO....

O mito é a verdade que esconde outra verdade, pois é mister em ir além das aparências, busca significados da parte abstrata, no sentido mais profundo.

Segundo Malinnowski, o mito "é uma realidade que corresponde a uma necessidade religiosa, à aspirações morais e à imperativos da ordem social".

André Lalande:

"Narrativa fabulosa de origem popular e não reflexiva, no qual os agentes impessoais, na maior parte dos casos as forças da natureza são representadas sob a forma de seres personificados, cujas ações ou aventuras têm um significado simbólico".

Erlch Fromm:

"O mito como o sonho, apresenta uma estória desenrolando-se no tempo e espaço, estória essa que exprime em linguagem simbólica idéias religiosas e filosóficas, experiências, da alma em que se reside o verdadeiro significado do mito. Se a gente não logra apreender o significado real do mito, fica em face de uma imagem ingênua, pré-científica do mundo e da história e, na melhor das hipóteses, um produto de uma bela imaginação poética, ou então, esta é a atitude de crente ortodoxo, a estória manifesta do mito é verídica e tem-se de acreditar nela como um relato correto dos fatos deveras ocorridos na realidade".

"O mito é a resposta a um estímulo e uma necessidade psíquica, enquanto a imaginação é o caldo nutriente, o meio de cultura onde a semente do mito germina e floresce." Franz K. Pereira

O mito, nada mais é do que projeções de fatos reais, as quais o homem procurou registrar com suas limitadas expressões e que, com a tradição oral, ganhou um colorido especial, até que restou apenas uma "imagem"da verdade, refletida em um espelho esfumaçado.

O OCEANO SONHADO DO INCONSCIENTE

Analisar um mito, é viver em um mundo transfigurado e impregnado da presença de seres sobrenaturais.

Para realizarmos a crítica sobre o mito, devemos primeiro, nos situarmos na realidade, tratando de encontrar um método que nos permita nos acercarmos do "oceano sonhado do inconsciente", tratando de assinalar as determinações, os caminhos que traduzem esta realidade fantástica e arbitrária, transformando-os em signos mais compreensíveis à realidade cotidiana.

Nesta zona do imaginário aborígine, não era uma presença insólita como o cavalo alado dos gregos ou os castelos encantados do imaginário medieval. Aqui, como em toda a América, o imaginário era uma presença constante, um compartilhar cotidiano que tinha como conseqüência direta a criação de mitos e lendas que constituem o que denominamos de realismo mágico, que nasceu em uma atmosfera e dimensão sobrenatural, sendo considerado a manifestação mais pura e autêntica do universo americano.

O nosso indígena era um fazedor de mitos e lendas, este é o maior dos legados.

Hoje, para nossa felicidade, percebemos uma resistência organizada por parte de alguns povos indígenas no sentido de preservar a cultura de seus ancestrais. Todos nós, também podemos lhes prestar assistência , divulgando e prestigiando seu acervo cultural.

É embrenhando-nos na maravilhosa selva do nosso interior, onde habitam o sentimento rude, primitivo, bárbaro, que nos foi herdado da inquietude de nossos ancestrais, que aprenderemos mais sobre nós mesmos. Neste esplendor, vicejam mitos robustos e inconcebíveis, onde ainda correm em suas veias a seiva quente das terras de sua origem.

É através do estudo do inconsciente portanto,que poderemos nos reconciliar com os bárbaros dentro de nós. O drama do mundo pode começar a ser resolvido e desempenhado dentro de cada indivíduo. Se esta revolução pacífica pudesse ser conseguida em um número suficiente de pessoas, não poderia acontecer a renovação da vida sem necessidade de passar por uma fase de destruição e barbarismo? Ocorrendo esta revolução de dentro para fora, desnecessária seria a destruição de qualquer civilização. Por isso é importante estudarmos o inconsciente de maneira a reconstruir nossas atitudes de acordo com as forças negligenciadas. Realmente, esta negligência tem nos levado a uma certa falsificação de valores...

PARALELO ENTRE LENDAS E MITOS

Na maioria das vezes, mitos e lendas são confundidos. Realmente, os limites entre um e outro, são quase inexistentes.

Segundo Luis da Câmara Cascudo, o elemento de distinção entre lenda e mito está no fator "tempo-espaço".

O mito estaria acima do tempo e do espaço, é universal. Já a lenda, é um episódio heróico-sentimental que tem por origem fatos que impressionaram o imaginário popular e localizável no tempo e espaço. Conserva também, as quatro características do conto popular: a antiguidade, a persistência, o anonimato e a oralidade. Se distingue do mito pela "função e o confronto".

A principal característica do mito é a sua natureza "não reflexiva" (André Lalandre), ou seja, sua falta de questionamento ou críticas. Victor Jabouille, lhe dá uma conotação mais ampla ao afirmar que: "o mito é tão vasto que nele se pode incluir praticamente toda a expressão cultural humana...é a materialização extremamente completa do Imaginário Humano".

Tanto o mito quanto a lenda são a história de um País contada pelo seu povo. Enquanto o mito é universal, a lenda é local. O mito é atemporal, já a lenda se localiza no tempo.

Um povo conta mitos e lendas na tentativa de relatar suas memórias, são nada menos, que depoimentos que um povo faz sobre si mesmo, acrescidos de alguns floreios, necessários para despertar nossa atenção.

O MITO E A MENTE CONTEMPORÂNEA

Sem dúvida, o ser humano já alcançou uma evolução significativa. Mas apesar de todos estes avanços no campo intelectual, científico e tecnológico, não encontrou eco que respondesse suas expectativas ou decifrasse seu enigma existencial. Tampouco vislumbrou lograr a paz associada à justiça social. Então de que modo pode o homem moderno suportar a carga de sua existência? Ou mesmo enfrentar catástrofes, terrorismos, guerras, bombardeio atômicos se a justiça é um jogo cego e sujo e encontra-se nas mãos de forças econômicas que não se preocupam com o seu bem estar?

Neste instante de tempo, nossa insatisfação tem sido enfatizada pelas convulsões mundiais, ânsias por guerra, o que tem nos provado que a felicidade e realização na vida não são encontradas na produção em massa ou nas novas descobertas tecnológicas ou científicas. A insatisfação mostra-se não tão somente na ansiedade geral, mas também na neurose e infelicidade, assim como cria uma sensação de frustração e falta de entusiasmo real. Em verdade, estamos insatisfeitos com a qualidade dos relacionamentos humanos. Com certeza, nossos avós e nossos pais, eram menos suscetíveis a desarmonia e ao tédio, por realizarem relacionamentos mais satisfatórios. Hoje nossa vida é fria, vazia e estéril. Devemos buscar, portanto, um renascimento espiritual que alimente nosso interior, pois a ciência só tem nos provado que é impotente em face de uma ameaça de colapso da nossa cultura.

É imperativo um contato renovado com os níveis mais profundos da natureza, para que se promova uma verdadeira relação vital a ser estabelecida com leis e princípios que ativem a humanidade. Não devemos nos esquecer que nossos ideais sempre são centrados em nossos sentimentos e para alcançá-los, se requer algo mais do que um elaborado trabalho acadêmico.

"O caos que a sociedade atual vivencia, pode ser devido ao permanente processo mitogênico e mitofágico que o progresso provoca. O progresso é mitofágico, mas o ser social é mitogênico, porque é através do mito que ele procura estabelecer uma ordem, da mesma maneira que ele se utiliza de uma mandala para promover o equilíbrio em seus caos interior." 
Franz 
K. Pereira

Fomos, somos e sempre seremos eternos "Caçadores de Emoções", sem nossos mitos e lendas, com suas maravilhosas fantasias e sonhos a serem realizados, nossa vida seria totalmente sem graça.

O mundo através dos mitos e lendas, renasce como uma primavera. O homem é o único herdeiro destas tradições, vivências, ensinamentos e é somente através deles que vencerá seu terror existencial e histórico e, assimilando este aprendizado, se fará merecedor da exuberante e esperançosa primavera que florescerá em seu coração.

Hoje, mais do que nunca, as raízes de nosso espírito, leva-nos cada vez mais a indagar sobre as nossas origens.

Autora: Rosane Volpatto (fonte: blocos on line)

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