quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Contos Lovecraft: A Coisa na soleira da porta - Parte final

Finalmente, a 3º e última parte do conto "A coisa na soleira da porta". Leia com atenção para ter toda a experiência que o texto pode trazer...

V

Os dois meses seguintes foram cheios em rumores. Pessoas falavam de ter visto Derby cada vez mais em seu novo estado enérgico, e Asenath raramente estava em casa para as poucas pessoas que os procuravam. Recebi apenas uma breve visita de Edward, quando ele apareceu no carro de Asenath – devidamente recuperado do lugar onde o havia deixado no Maine – para pegar uns livros que me havia emprestado. Ele estava em seu novo estado, e demorou-se apenas o tempo suficiente para algumas observações evasivas e polidas. Era evidente que não tinha nada sobre o que conversar comigo quando estava naquele estado – e notei que nem se dera ao trabalho de usar o velho código três-mais-dois ao tocar a campainha. Como acontecera naquela noite, no carro, senti um horror vago mas muitíssimo mais profundo que não saberia explicar, e a sua partida precipitada me caiu como um alívio imenso.

Em meados de setembro, Derby ficou uma semana fora e umas pessoas bem informadas do grupo decadentista da universidade falaram do caso, insinuando uma reunião com um notório líder de culto recém-expulso da Inglaterra, que se estabelecera em Nova York. De minha parte, não conseguia tirar da cabeça aquela estr anha viagem de volta do Maine. A transformação que havia testemunhado me afetara sobremaneira, e eu flagrava, vezes e mais vezes, tentando entender a coisa – e o supremo horror que ela me havia inspirado. Mas os rumores mais extravagantes eram os que tratavam dos soluços no velho solar de Crowninshield. A voz parecia ser a de mulher, e alguns dos mais jovens achavam que se assemelhava à de Asenath. Ela só era ouvida esparsamente, e às vezes era sufocada, como que à força. Falou-se de uma investigação, mas esta foi descartada no dia em que Asenath circulou pelas ruas e tagarelou animadamente com muitos conhecidos – desculpando-se por suas recentes ausências e falando, aqui e ali, sobre o colapso nervoso e a histeria de um hóspede seu vindo de Boston. O hóspede jamais foi visto, mas a presença de Asenath punha um fim aos rumores. Mas alguém complicou as coisas murmurando que os soluços haviam sido, uma ou duas vezes, de voz masculina. Certa noite de meados de outubro, ouvi o familiar toque três-mais-dois da campainha na porta da frente. Atendendo pessoalmente, encontrei Edward nos degraus, e percebi, no mesmo instante, que sua personalidade era a antiga, a que eu não via desde o dia de seu delírio naquela terrível viagem de Chesuncook. Seu rosto estava desfigurado por uma mistura de emoções estranhas onde medo e triunfo pareciam dividir o controle, e ele olhou furtivamente por cima dos ombros enquanto eu fechava a porta às suas costas.

Seguindo-me sem jeito até o estúdio, pediu uísque para refazer os nervos. Abstive-me de questioná-lo, esperando que se sentisse à vontade para dizer o que queda. Enfim, ele aventurou algumas informações com voz abafada.

“Asenath foi embora, Dan. Tivemos uma longa conversa ontem à noite enquanto os criados estavam fora, e fiz com que prometesse parar de me perseguir. É óbvio que eu tinha algumas – algumas defesas secretas que nunca lhe contei. Ela tinha de ceder, mas ficou zangada demais. Simplesmente fez as malas e partiu para Nova York – saiu em tempo de pegar o 8:20 para Boston. Imagino que as pessoas vão comentar, mas não posso evitar. Não precisa mencionar que houve algum problema – diga apenas que ela saiu para uma longa viagem de pesquisa.

“É bem provável que ela vá ficar com um de seus horríveis grupos de devotos. Espero que vá para o Oeste e consiga o divórcio – de qualquer forma, fiz ela prometer que ficaria longe e me deixaria em paz. Foi horrível, Dan – ela estava roubando meu corpo – me ocupando – me aprisionando. Eu me humilhei e fingi deixá-la fazer isso, mas tinha de ficar em guarda. Eu poderia planejar se fosse cuidadoso, pois ela não pode ler a minha mente literalmente, ou em detalhes. Tudo que ela conseguia captar de meus planos era uma espécie de rebeldia genérica – e ela sempre achava que eu estava desamparado. Nunca pensou que eu poderia extrair o máximo dela, mas eu tinha um feitiço ou dois que funcionavam”

Derby olhou por cima dos ombros e serviu-se de mais uísque. “Acertei as contas com os malditos criados esta manhã, quando voltaram. Eles ficaram possessos e fizeram perguntas, mas foram embora. São da mesma laia dela – gente de Innsmouth – e eram unha e carne com ela. Espero que me deixem em paz – não gostei do jeito como riam quando se foram. Preciso conseguir o máximo que puder dos velhos criados de papai. Agora vou voltar para casa.

“Imagino que me ache louco, Dan – mas a história de Arkham devia sugerir coisas em reforço do que lhe contei – e do que vou contar-lhe. Você viu uma transformação, também –, no carro, depois que lhe contei sobre Asenath naquele dia, voltando do Maine. Foi quando ela me pegou - me expulsou do meu corpo. A última coisa de que me lembro da viagem foi quando estava tentando dizer-lhe o que é aquela diaba. Ai ela me pegou e num instante eu estava lá em casa – na biblioteca, onde aqueles malditos criados me haviam trancado – e naquele maldito corpo endiabrado... que nem humano é... Sabe, foi com ela que você deve ter viajado para casa... aquela loba rapinando meu corpo... Você deve ter notado a diferença!”

Estremeci, enquanto Derby se calava. Sim, eu havia percebido a diferença – mas poderia aceitar uma explicação tão insana como essa? Mas meu perturbado visitante estava ficando cada vez mais alucinado.

"Eu tinha de me salvar – eu tinha, Dan! Ela me teria levado, definitivamente, para a Festa de Todos os Santos – eles festejam um Sabá para além de Chesuncook, e o sacrifício teria resolvido as coisas. Ela se teria apossado para sempre de mim... ela seria eu, e eu seria ela, para sempre... tarde demais... – Meu corpo seria dela para sempre... Ela seria um homem, um homem completo, como pretendia... Imagino que me tiraria do caminho – mataria seu próprio corpo antigo comigo dentro, maldita seja, como já fez antes – como ela, ele, ou a coisa fez antes...”

O rosto de Edward estava dolorosamente desfigurado quando o inclinou para meu desconforto, para perto do meu, enquanto sua voz se resumia a um sussuro. “Você deve saber o que insinuei no carro – que ela não é de modo algum Asenath, mas o próprio velho Ephraim. Suspeitei disso há um ano e meio, mas agora sei. A caligrafia dela o comprova quando ela está distraída – às vezes ela rascunha uma anotação que é tal e qual os manuscritos de seu pai, letra por letra – e às vezes diz coisas que ninguém, exceto um velho como Ephraim, poderia dizer. Ele trocou de forma com ela quando sentiu a morte aproximar-se – ela foi a única que pôde encontrar com o tipo apropriado de cérebro e vontade fraca o bastante – ficou com o seu corpo para sempre, assim como ela quase ficou com o meu, e depois envenenou o corpo antigo onde a havia colocado. Não percebeu a presença da alma do velho Ephraim fitando pelos olhos daquela diaba dezenas de vezes.., e dos meus, quando ela controlava o meu corpo?”

Ofegando, Edward cessou os murmúrios para recuperar o fôlego. Eu não disse nada e quando recomeçou, sua voz estava quase normal. Isso, refleti, era caso para asilo, mas não seria eu quem o enviaria para lá. Talvez o tempo e a separação de Asenath fizessem seu trabalho. Dava para perceber que ele jamais meteria o nariz no mórbido ocultismo outra vez.

“Vou contar-lhe mais depois – preciso de um bom descanso agora. Vou contar-lhe um pouco dos horrores ocultos aos quais ela me levou – um pouco sobre os horrores imemoriais que ainda agora supuram em nações distantes com alguns sacerdotes monstruosos para mantê-los vivos.

Algumas pessoas sabem coisas sobre o universo que ninguém deveria saber, e podem fazer coisas que ninguém deveria poder. Estive metido até o pescoço nisso, mas é o fim. Hoje eu queimaria o maldito Necronomicon e todo o resto se fosse bibliotecário na Miskatonic!”

“Mas agora ela não pode pegar-me. Preciso sair daquela casa amaldiçoada o quanto antes e me instalar na minha própria casa. Você vai me ajudar, eu sei, se eu precisar de ajuda. Aqueles criados diabólicos, sabe... e se as pessoas ficarem muito curiosas sobre Asenath. Olhe, não posso dar o endereço dela a eles... Depois, existem certos grupos de pesquisadores – certos cultos, sabe – que poderiam interpretar mal nosso rompimento... alguns têm métodos e idéias muitíssimo bizarras. Sei que você ficará do meu lado se alguma coisa acontecer... mesmo que eu tenha de lhe contar muita coisa que possa chocá-lo..!”

Fiz Edward ficar e dormir no quarto de hóspedes naquela noite e, pela manhã, ele parecia mais calmo. Discutimos alguns arranjos possíveis para sua mudança para a mansão dos Derby, e torci para que não perdesse tempo para se mudar. Na noite seguinte ele não apareceu, mas eu o vi com freqüência nas semanas seguintes. Conversamos o mínimo possível sobre coisas estranhas e desagradáveis, mas discutimos a redecoração da velha casa dos Derby, e as viagens que Edward prometera fazer com meu filho e eu no verão seguinte.

De Asenath quase não falávamos pois eu podia perceber que o tema lhe era particularmente perturbador. Os rumores, é claro, se espalhavam, mas não houve novidades relacionadas com o estranho assunto na velha casa de Crowninshield.

Uma coisa de que não gostei foi o que o banqueiro de Derby deixou escapar, em momento de euforia, no Clube Miskatonic – sobre os cheques que Edward estava mandando sempre para certos Moses e Abigail Sargent e certa Eunice Babson em Innsmouth. Era como se aqueles criados abjetos estivessem extorquindo algum tipo de imposto dele – embora não me tivesse mencionado o assunto.

Gostaria que o verão – e as férias do meu filho em Haward – chegassem, para podermos levar Edward à Europa. Não demorou para eu perceber que ele não se estava restabelecendo tão rapidamente quanto eu esperava, pois havia algo de histérico em seus momentos ocasionais de satisfação, enquanto os momentos de pavor e depressão eram freqüentes demais. A velha casa dos Derby ficou pronta em dezembro, mas Edward adiava repetidas vezes a mudança. Embora odiasse e parecesse temer a casa de Crowninshield, estava, ao mesmo tempo, curiosamente escravizado a ela.

Parecia que ele não conseguia começar a desmontar as coisas, e inventava toda sorte de desculpas para adiar a mudança. Quando chamei sua atenção para isso, ele me pareceu assustado sem razão. O velho mordomo de seu pai – que estava lá com outros criados de família recuperados – contou-me, certo dia, que as andanças ocasionais de Edward pela casa, e especialmente pelo porão, lhe pareciam estranhas e perigosas. Quis saber se Asenath não lhe andara escrevendo cartas perturbadoras, mas soube, pelo mordomo, que não chegara nenhuma correspondência que pudesse ter vindo dela.

VI

Foi perto do Natal que Derby sucumbiu, certa noite, quando me visitava. Eu estava levando a conversa para as viagens do verão seguinte quando ele soltou um grito agudo e saltou da cadeira com uma expressão de terrível e incontrolável pavor – de uma repulsa e um terror cósmico que só os abismos inferiores do pesadelo poderiam provocar em qualquer mente sã.

“Meu cérebro! Meu cérebro! Por Deus, Dan – ela está puxando – do além – martelando – agarrando – aquela demônia – neste instante – Ephraim – Kamog! Kamog! – O poço dos shoggoths – lã! Shub-Niggurath! O Bode com Mil Filhotes!...

“A chama – a chama... além do corpo, além da vida.., na terra... oh”

Empurrei-o de novo para a cadeira e despejei um pouco de vinho pela sua garganta quando seu delírio se desfez num estado de estupor. Ele não opôs resistência, mas continuou mexendo os lábios como se estivesse falando sozinho. Percebi então que estava tentando falar comigo e aproximei o ouvido de sua boca para entender as palavras balbuciadas.

“... de novo, de novo.., ela está tentando... eu devia saber... nada pode parar aquela força; nem distância, nem magia, nem a morte... ela vem e vem, principalmente à noite... não posso deixar... é horrível.., oh, Deus, Dan, se soubesse como é horrível...”

Quando ele mergulhou no estado de estupor, acomodei-o com travesseiros e deixei que fosse dominado pelo sono natural. Não chamei um médico imaginando o que não diriam de sua sanidade mental, e quis dar uma chance à Natureza, se fosse possível. Ele despertou à meia-noite, e eu o coloquei na cama, no andar de cima, mas, pela manhã, ele se fora. Saira de casa na calada. Seu mordomo, chamado pelo telefone, disse que ele estava em casa andando sem parar, de um lado para outro, na biblioteca.

Edward se descontrolou rapidamente depois daquilo. Não tornou a me visitar, mas eu ia vê-lo todo dia. Eu o encontrava sempre olhando para o vazio, sentado na biblioteca, com uma expressão anormal de alguém que está tentando escutar alguma coisa. Às vezes sua conversa era racional, mas sempre sobre assuntos triviais. Qualquer menção ao seu problema, a planos futuros ou a Asenath o deixava histérico. O mordomo dizia que ele tinha acessos de pavor à noite, durante os quais poderia acabar se ferindo.

Tive longas conversas com seu médico, seu banqueiro e seu advogado e finalmente levei o médico e dois colegas especialistas para vê-lo. As convulsões provocadas pelas primeiras perguntas foram violentas e deploráveis – e naquela mesma noite, um carro fechado levou seu pobre corpo dilacerado para o Sanatório de Arkham. Nomearam-me seu tutor e eu o visitava duas vezes por semana – quase chorando ao ouvir seus gritos desvairados, seus murmúrios estarrecedores e as terríveis, monótonas repetições de frases como “Tinha de fazer – tinha de fazer.. vai me pegar... vai me pegar... lá... lá no escuro... Mãe! Mãe! Dan! Me salvem.., me salvem...”

Ninguém saberia dizer quanta esperança de recuperação haveria, mas tentei, ao máximo, ser otimista. Edward precisaria de um lar caso se recuperasse, por isso transferi seus criados para a mansão dos Derby, que certamente seria a sua escolha se estivesse são. O que fazer da casa de Crowninshield com suas providências complexas e coleções de objetos de todo inexplicáveis, eu não poderia decidir, por isso deixei-a provisoriamente intacta – dizendo ao pessoal de Derby para ir até lá espanar o pó dos quartos principais uma vez por semana e ordenando ao encarregado da caldeira para deixá- la acesa naqueles dias.

O pesadelo final aconteceu antes do dia da Candelária (Dia 2 de fevereiro, Festa da Purificação da Virgem Maria) – anunciado, cruel ironia, por um falso brilho de esperança.

Numa manhã do final de janeiro, telefonaram do sanatório para informar que Edward havia recuperado de repente a razão. Sua memória estava muito fraca, mas a sanidade mental era garantida.

Ele devia permanecer algum tempo em observação, é claro, mas não havia muitas dúvidas sobre o resultado. Se tudo saísse bem, ele poderia receber alta em uma semana.

Corri para lá cheio de satisfação, mas fiquei desconcertado quando uma enfermeira me levou ao quarto de Edward. O paciente levantou-se para me cumprimentar, estendendo as mãos com um sorriso polido, mas eu percebi, no mesmo instante, que exibia aquela personalidade estranhamente enérgica que parecia tão diferente de sua natureza – a personalidade competente que eu tinha achado um pouco horrível e que o próprio Edward havia jurado, certa vez, que era a alma intrusa da esposa.

Ali estavam o mesmo olhar brilhante – como o de Asenath e do velho Ephraim – e a mesma boca firme, e quando falou, pude sentir a mesma ironia penetrante e soturna em sua voz – a ironia profunda tão sugestiva de uma malignidade potencial. Aquela era a pessoa que havia dirigido meu carro durante a noite, cinco meses antes – a pessoa que eu não vira desde aquela breve visita em que ela havia esquecido o antigo código da campainha e incitado em mim pavores nebulosos – e agora me enchia do mesmo sentimento sombrio de ímpia estranheza e inefável abominação cósmica.

Ele falou afavelmente sobre os arranjos para a alta – e não me restava nada a fazer senão concordar, apesar de algumas lacunas notáveis em suas memórias recentes. Eu sentia, porém, que havia alguma coisa terrivelmente, inexplicavelmente errada e anormal. A criatura tinha horrores com os quais eu não podia atinar. Era uma pessoa de mente sã – mas seria mesmo o Edward Derby que eu conhecia? Se não era, quem ou o que seria – onde estava Edward? Devia ser solta ou confinada.., ou devia ser extirpada da face da Terra? Havia uma traço de ironia abissal em tudo que a criatura dizia – os olhos de Asenath emprestavam um ar de zombaria especial e desconcertante a certas palavras sobre “a liberdade prematura conquistada por um confinamento especialmente rigido”. Devo ter-me comportado de maneira muito canhestra e fiquei feliz ao bater em retirada.

Durante todo aquele dia e o seguinte quebrei a cabeça com o problema. O que teria acontecido? Que espécie de mente olhava por aqueles olhos alheios no rosto de Edward? Eu não conseguia pensar em mais nada além daquele enigma obscuro e terrível, e desisti completamente de meu trabalho usual.

Na segunda manhã, telefonaram do hospital para dizer que o estado do paciente permanecia inalterado, e à noite, eu cheguei à beira de um colapso nervoso – um estado que admito, embora outros vão jurar que ele alterou minha capacidade de observação subsequente. Nada tenho a dizer sobre esse ponto, exceto que nenhuma loucura minha poderia explicar todas as evidências.

VII

Foi à noite – depois daquela segunda noite – que o horror total, absoluto, me invadiu, oprimindo meu espírito com um pavor tétrico e arrebatador do qual ele não poderá libertar-se jamais.

Começou com uma chamada telefônica pouco antes da meia-noite. Eu era a única pessoa acordada e, sonolento, peguei o receptor na biblioteca. Não parecia haver ninguém na linha e eu estava quase desligando e indo para a cama quando meu ouvido captou uma suspeita de som muito tênue do outro lado. Seria alguém tentando falar com muita dificuldade? Enquanto tentava escutar, pensei ouvir uma espécie de liquido borbulhando – “glub... glub... glub” – que produzia uma estranha sugestão de divisões de sílabas e palavras desarticuladas, ininteligíveis. Disse “Ola?” mas a única resposta foi “glub-glub... glub-glub.” Só pude supor que o ruído era mecânico, mas imaginando que pudesse ser um defeito do aparelho que impedia de falar mas não de ouvir, acrescentei: “Não estou conseguindo ouvir. É melhor desligar e tentar Informação.” Na hora escutei o receptor ser pendurado no gancho, na outra ponta.

Isso, como disse, ocorreu pouco antes da meia-noite. Quando a ligação foi rastreada, mais tarde, descobriu-se que viera da velha casa de Crowninshield, embora faltasse ainda meia semana para o dia da faxina. Apenas indicarei o que foi encontrado naquela casa – o alvoroço numa remota dispensa do porão, as pegadas, a sujeira, o guarda-roupa remexido às pressas, as marcas enigmáticas no telefone, o papel de carta usado de maneira canhestra e o pavoroso mau cheiro espalhado por toda parte. Os policiais, pobres tolos, fizeram suas teoriazinhas sobre um roubo, e ainda estão procurando aqueles sinistros criados despedidos – que haviam sumido de vista em meio à agitação reinante.

Falam de uma vingança diabólica por coisas que foram feitas, e dizem que eu estava incluído porque era o melhor amigo e conselheiro de Edward. Idiotas! – imaginam, talvez, que aqueles palhaços abrutalhados poderiam ter forjado aquela caligrafia? Imaginam que poderiam ter causado o que veio depois? E estarão cegos para as transformações daquele corpo que foi de Edward? Quanto a mim, eu agora acredito em tudo que Edward Derby me contou. Existem horrores além das fronteiras da vida de que não suspeitamos e, de vez em quando, a malignidade humana os coloca dentro de nosso alcance. Ephraim – Asenath – aquele demônio os convocou, e eles tragaram Edward assim como estão me tragando.

Posso estar certo de estar em segurança? Aquelas potências sobrevivem à vida da forma física. No dia seguinte – à tarde, quando saí de meu estado de prostração e fui capaz de andar e falar coerentemente –, fui até o asilo e atirei para matar, para o bem de Edward e do mundo, mas posso estar seguro antes de ele ser cremado? Estão preservando o corpo para a realização de tolas autópsias por vários médicos – mas eu digo que ele deve ser cremado. Ele deve ser cremado – ele que não era Edward Derby quando o matei. Ficarei louco se não o for, pois eu poderei ser o próximo. Mas minha vontade não é fraca – e não a deixarei ser minada pelos terrores que eu sei que estão à espreita. Uma vida – Ephraim, Asenath e Edward – quem agora? Eu não serei retirado de meu corpo... eu não trocarei de alma com aquele cadáver baleado no asilo! Mas deixem-me tentar contar de maneira coerente aquele horror final. Não falarei do que a polícia sistematicamente ignorou – os relatos sobre aquelas coisas anãs, grotescas e malcheirosas encontradas por, pelo menos, três caminhantes na High Street, pouco antes das duas da manhã, e sobre a natureza das pegadas simples em certos locais. Direi apenas que, por volta das duas, a campainha e a aldrava me acordaram – campainha e aldrava, ambas, soadas de maneira alternada e incerta, numa espécie de desespero impotente, e cada uma tentando repetir o velho código de três-mais-duas batidas de Edward.

Despertando de um sono profundo, minha mente entrou num torvelinho. Derby à porta – e lembrando-se do velho código! Aquela nova personalidade não se havia lembrado dele..., era Edward de volta, inesperadamente, em seu estado normal? Por que estaria aqui com a pressa e tensão que evidenciava? Teria sido libertado antes do tempo, ou teria escapado? Talvez, pensei enquanto me enfiava num robe e descia as escadas, sua volta ao próprio ser tivesse provocado delírio e violência, a revogação da alta, e levando-o a uma arremetida desesperada para a liberdade. O que quer que tivesse acontecido, era o bom velho Edward de novo, e eu o ajudaria!

Quando abri a porta para a escuridão das arcadas de olmos, uma rajada de vento insuportavelmente fétida quase me derrubou. Sufocado pela náusea, por um momento mal consegui enxergar a figura corcunda e anã nos degraus. As batidas haviam sido de Edward mas quem era aquela paródia retardada e aberrante? Para onde Edward tivera tempo de ir?

Sua chamada havia soado apenas um segundo antes da porta ser aberta. O visitante usava um dos sobretudos de Edward – a barra quase raspando no chão e as mangas enroladas, mas ainda encobrindo as mãos. Trazia um chapéu enterrado na cabeça, enquanto um cachecol de seda preto ocultava o rosto. Quando dei um passo trôpego para a frente, a figura produziu um som meio líquido como o que eu ouvira pelo telefone – “glub... glub...” – e estendeu-me uma grande folha de papel coberta de letras miúdas espetada na ponta de um lápis comprido. Ainda cambaleando devido ao fedor mórbido e indescritível, peguei o papel e tentei lê-lo à luz do pórtico.

A caligrafia era mesmo a de Edward. Mas por que teria ele escrito quando estava perto o bastante para ter tocado a campainha – e por que a letra estava tão desajeitada, grosseira e tremida? Não consegui entender nada com aquela iluminação fraca, por isso recuei para o vestíbulo com a figura anã cambaleando mecanicamente atrás de mim, mas parando na soleira da porta interna. O cheiro daquele estranho mensageiro era deveras aterrador, e esperei (não em vão, graças a Deus) que minha esposa não despertasse e o visse.

Então, enquanto lia o papel, senti meus joelhos cederem sob os meus pés e minha vista escurecer. Quando voltei a mim, estava caldo no chão com a maldita folha amassada na mão crispada. Isto é o que ele dizia:

“Dan – vá ao sanatório e mate-a. Extermine-a. Ela não é mais Edward Derby. Ela me pegou – é Asenath – e ela está morta há três meses e meio. Menti quando disse que ela havia partido. Eu a matei. Tinha de fazê-lo. Foi de repente, mas estávamos sozinhos e eu estava em meu corpo verdadeiro. Vi um castiçal e esmaguei-lhe a cabeça. Ela se teria apoderado de mim para sempre no dia de Candelária.

“Enterrei-a na despensa mais afastada do porão, embaixo de umas caixas velhas, e limpei todos os vestígios. Os criados suspeitaram na manhã seguinte, mas eles têm segredos tais que não ousam contar à polícia. Mandei-os embora, mas Deus sabe o que eles – e outros do culto – farão.

“Pensei, por algum tempo, que estaria bem, mas depois senti o repelão em meu cérebro. Sabia do que se tratava – eu devia ter-me lembrado. Uma alma como a dela – ou de Ephraim – é meio desligada, e se conserva depois da morte enquanto o corpo durar. Ela estava me pegando – me obrigando a trocar de corpo com ela – ocupando meu corpo e colocando-me naquele cadáver dela enterrado no porão.

“Eu sabia o que estava por vir – e é por isso que eu entrei em colapso e tive de ir para o asilo. Então a coisa veio – dei por mim sufocando no escuro – na carcaça putrefacta de Asenath, lá no porão, embaixo das caixas onde eu a pusera. E sabia que ela devia estar em meu corpo no sanatório – para sempre, pois era depois da Candelária, e o sacrifício funcionaria mesmo sem ela estar presente – sã, e pronta para ser libertada como uma ameaça para o mundo. Eu estava desesperado, e apesar de tudo, abri caminho para fora com as mãos.

“Já fui longe demais para poder falar – não poderia usar o telefone – mas ainda posso escrever. Vou me recompor de alguma maneira e levar até você esta última palavra e recomendação. Mate aquele demônio se dá valor à paz e ao conforto do mundo. Cuide para que ele seja cremado. Se não o fizer, ele viverá e viverá, de corpo em corpo para sempre, e não sei lhe dizer o que fará. Afaste-se da magia negra, Dan, é coisa do diabo. Adeus – você foi um grande amigo. Conte à polícia tudo em que eles puderem acreditar – e lamento profundamente jogar isso tudo em cima de você. Em breve estarei em paz – essa coisa não vai agüentar muito mais. Espero que possa ler isto. E mate aquela coisa – mate-a.

Seu – Ed.”

Foi só mais tarde que eu li a segunda metade do papel, pois havia desmaiado no final do terceiro parágrafo. Desmaiei novamente quando vi e cheirei o que se amontoara na soleira onde o ar quente o alcançara. O mensageiro não se mexeria ou teria consciência jamais. O mordomo, mais corajoso do que eu, não desmaiou com o que o esperava no vestíbulo, pela manhã, e telefonou para a polícia. Quando eles chegaram, eu havia sido levado para a cama no andar de cima, mas a – outra massa – jazia lá onde havia desmoronado à noite. Os homens taparam os narizes com seus lenços.

O que eles enfim encontraram no interior das roupas sortidas de Edward foi quase só um horror liquescente. Havia ossos também – e um crânio esmagado. Algumas restaurações dentárias ajudaram a identificar positivamente: o crânio era de Asenath.

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