quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Contos de Lovecraft - O Livro


O LIVRO -

POR H.P LOVECRAFT

MINHAS MEMÓRIAS ESTÃO muito confusas. Há até mesmo muita dúvida de onde elas começam; pois por vezes sinto imensuráveis vistas de anos se estendendo atrás de mim, enquanto que em outros momentos parece que o momento presente é um ponto isolado num infinito cinzento e sem forma. Não estou nem certo de como estou transmitindo esta mensagem. Enquanto sei que estou falando, tenho uma vaga impressão de que alguma estranha e talvez terrível mediação venha a ser necessária para suportar o que digo aos pontos onde desejo que ela seja ouvida. Minha identidade, também, encontra-se incrivelmente toldada. Parece que sofri um grande choque: talvez devido a algum resultado monstruoso de meus ciclos de única e incrível experiência. 


Todos esses ciclos de experiência, naturalmente, emanam daquele livro dominado pelas traças. Lembro-me de quando o encontrei — num lugar mal iluminado próximo ao rio negro e oleoso onde as brumas sempre habitam. Aquele lugar era muito antigo, e as prateleiras cheias de volumes apodrecidos até o teto percorriam infinitamente quartos e alcovas internas, sem janelas. 

Havia, além disso, grandes pilhas informes de livros no chão e em caixas de madeira, e foi numa dessas pilhas que encontrei a coisa. Nunca lhe soube o título, pois as páginas iniciais estavam faltando; mas ele caiu aberto na altura do fim, e me deu um vislumbre de alguma coisa que deixou meus sentidos em polvorosa. 
Havia uma formula — uma espécie de lista de coisas para fazer e dizer — que reconheci como sendo alguma coisa negra e proibida; alguma coisa que eu havia lido antes, em furtivos parágrafos de nojo e fascinação misturados, escritos pela pena desses antigos e estranhos guardiões dos segredos do universo cujos textos decadentes eu adorava assimilar. Era uma chave — um guia — a certos portais e transições com a quais místicos sonham e sussurram desde a juventude da raça, e que levam a liberdades e descobertas além das três dimensões e dos reinos da vida e da matéria que conhecemos. Por séculos não havia qualquer homem recombinando sua substância vital ou sabido onde encontrá-la, mas este livro era realmente muito antigo. Não era trabalho impresso, mas da mão de algum monge semi-louco, havia traçado aquela ominosas frases latinas em letras unciais de assustadora antigüidade. 

Lembro-me de como o velho olhou-me de soslaio e riu à socapa, e fez um curioso sinal com a mão quando o levei embora. Recusou-se aceitar pagamento por ele, e só muito tempo depois eu soube por quê. Ao correr para casa por aquelas estreitas, tortuosas, brumosas ruas e beira-mar tive uma aterrorizante impressão de ser furtivamente seguido por pés suavemente calçados. As balouçantes casas centenárias em ambos os lados pareciam vivas com um frescor e uma malignidade mórbida — como se algum canal maligno até então fechado tivesse abruptamente sido aberto. Senti que aquelas paredes e frontões ressaltados de tijolos orvalhados e caimento cheio de fungos e madeira — com janelas de grades cruzadas que lembravam olhos e me espionavam sorrateiras — mal poderiam desistir de avançar e me esmagar... mas mesmo assim eu só havia lido o menor fragmento daquela runa blasfematória antes de fechar o livro e leva-lo comigo. 

Lembro-me de como finalmente li o livro — com o rosto pálido, e trancado no quarto do sótão que de há muito eu devotava estranhas buscas. A grande casa estava muito silenciosa, pois eu não me levantara senão depois da meia-noite. Acho que eu tinha uma família então — embora os detalhes sejam muito incertos — eu sei que havia muitos serviçais. Mas que ano era, não sei dizer; pois desde então tenho conhecido tantas eras e dimensões, e todas as minhas noções de tempo se dissolveram e se remoldaram. Era à luz de velas que eu lia — recordo-me do incessante pingar da cera — e carrilhões que soavam de vez em quando, de distantes campanários. Parece que eu acompanhava o soar daqueles carrilhões com peculiar atenção, como se eu temesse ouvir alguma coisa muito remota, um nota intrusa entre as demais. 

Então vieram os primeiros ruídos na janela do dormitório, que ficava muito acima dos demais telhados da cidade. Veio quando eu murmurava em voz alta o nono verso daquele tratado primário, e percebi, entre meus tremores, o que aquilo queria dizer. Pois aquele que passa os portais sempre vence uma sombra, e nunca mais pode estar só. Eu havia evocado — e o livro era realmente tudo o que eu suspeitara. Aquela noite eu atravessei o portal para um vórtice de tempo e visão distorcidos, e quando a manhã me encontrou no quarto do sótão eu vi nas paredes, e nas prateleiras e nas gavetas o que nunca vira antes. 

Nem nunca mais pude ver o mundo como o conhecera. Misturados ao cenário presente havia sempre um pouco do passado e um pouco do futuro, e cada objeto antes familiar agora pairava alienígena na nova perspectiva trazida pela minha visão ampliada. Daí em diante caminhei num sonho fantástico de formas desconhecidas e semiconhecidas; e a cada novo portal atravessado, menos eu podia reconhecer as coisas da estreita esfera a qual eu portanto tempo fora ligado. O que eu via ao meu redor, ninguém mais via; e comecei a ficar duplamente silencioso e recolhido para não enlouquecer. Os cães tinham medo de mim, pois eles sentiam a sombra exterior que jamais me abandonava. Mas eu ainda lia mais — às escondidas, livros e rolos esquecidos aos quais minha nova visão me levava — e avançava por novos portais do espaço, seres e padrões de vida através do núcleo do Cosmos desconhecido. 

Lembro-me da noite em que fiz os cinco círculos concêntricos de fogo no chão, e postei-me de pé no mais interior, entoando a monstruosa litania que o mensageiro do Tártaro havia trazido.As paredes se derreteram, e fui varrido por um vento negro através de abismos de um cinza sem fim com os pináculos agudos de desconhecidas montanhas a quilômetros abaixo de mim. Depois de algum tempo houve uma profunda escuridão, e então a luz de miríades de estrelas formando estranhas constelações alienígenas. Finalmente vi uma planície verdejante bem abaixo de mim, e nela discerni as torres distorcidas de uma cidade construída em nenhum estilo que eu jamais tenha ouvido falar ou lido ou sonhado a respeito. Ao flutuar próximo a essa cidade, vi um grande edifício quadrado de pedra num espaço aberto, e senti um medo odioso tomar conta de mim. Gritei e lutei, e depois de um branco eu estava novamente em meu sótão, deitado sobre os cinco círculos fosforescentes no chão. No vagar daquela noite não havia mais estranhezas do que em muitas noites 
de vagares anteriores; mas havia mais terror porque eu sabia estar próximo daqueles golfos e mundos exteriores, mais próximo do que jamais estive antes. Portanto, portei-me com mais cautela com meus encantamentos, pois não tinha desejo de ser cortado de meu corpo e da Terra para abismos desconhecidos dos quais eu poderia jamais retornar... 

(Circa 1934)

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